I'm feeling rough, I'm feeling raw, I'm in the prime of my life.

por Ana em sábado, 6 de março de 2010



"Em poucas palavras se conta e aqui a vamos deixar para ilustração das novas gerações que a desconhecem com a esperança de que não trocem dela por ingénua e sentimental (...)
Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho. Ora sucedia que o avô ja tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida ao chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia. Estavam as coisas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora nao terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos. E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo chama o canal da sopa. Ao neto parecia nao lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada que ver com o caso. Até que uma tarde, ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha num pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos. No dia seguinte, porém deu-se conta de que não se tratava de um carrinho pelo menos nao se via sítio onde se lhe pudesse encaixar umas rodas e então perguntou, Que estás a fazer. O rapaz fingiu que não tinha ouvido e continuou a escavar na madeira com a ponta da navalha, isto passou-se no tempo em que os pais eram menos assustadiços e não corriam a tirar das mãos dos filhos um instrumento de tanta utilidade para a fabricação de brinquedos. Não ouviste, que estás a fazer com esse pau, tornou o pai a perguntar, e o filho, sem levantar a vista da operação, respondeu, Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô. Foram palavras santas. Caíram as escamas dos olhos do pai, viu a verdade e a sua luz, e no mesmo instante foi pedir perdão ao progenitor e quando chegou a hora da ceia por suas próprias mãos o ajudou a sentar-se na cadeira, por suas próprias mãos lhe levou a colher à boca, por suas próprias mãos lhe limpou suavemente o queixo, porque ainda o podia fazer e o seu querido pai já não. Do que veio a passar-se depois não há sinal na história, mas de ciência mui certa sabemos que se é verdade que o trabalho do rapazinho ficou em meio, também é verdade que o pedaço de madeira continua a andar por ali. Ninguém o quis queimar ou deitar fora quer fosse para que a lição do exemplo não viesse a cair no esquecimento, quer fosse para o caso de que alguém lhe ocorresse um dia a ideia de terminar a obra, eventualidade não de todo impossível de produzir-se se tivermos em conta a enorme capacidade de sobrevivência dos ditos lados escuros da natureza humana. Como já alguém disse, tudo o que possa suceder sucederá, é uma mera questão de tempo, e, se não chegámos a vê-lo enquanto por cá andávamos terá sido só porque não tínhamos vivido o suficiente. Pelos modos, e para que não nos acuse de pintarmos tudo com as tintas da parte esquerda da palete, há quem admita a hipótese de uma adaptação do amavioso conto à televisão, após tê-lo recolhido um jornal, sacudidas as teias de aranha, nas poeirentas prateleiras da memória colectiva, possa contribuir para fazer regressar às quebrantadas consciências das famílias o culto ou o cultivo dos incorpóreos valores de espiritualidade de que a sociedade se nutria no passado, quando o baixo materialismo que hoje impera ainda não se tinha assenhoreado de vontades que imaginávamos fortes e afinal era a própria e insanável imagem de uma confrangedora debilidade moral. Conservemos no entanto a esperança. No momento em que aquela criança aparecer no ecrã estejamos certos de que metade da populaçao do país correrá a buscar um lenço para enxugar as lágrimas e de que a outra metade, talvez de temperamento estóico as irá deixar correr pela cara abaixo em silêncio para que melhor possa observar-se como o remorso pelo mal feito ou consentido não é sempre uma palavra vã. Oxalá ainda estejamos a tempo de salvar os avós.”
José Saramago, in 'As Intermitências da Morte'

3 comentários

Adorei :)
Ainda que o livro não seja dos melhores dele

by Duarte Canotilho on 7 de março de 2010 às 00:53. #

Gosto particularmente de Saramago, a parte todas as polemicas que, para mim, nao passam de entretimento de massas e que sao alheios a qualidade da obra de um autor. lamento apenas te-lo descoberto tao tarde, com a leitura obrigatoria de Memorial do Convento no Ensino Secundario, mas que me deu especial gozo sobretudo com as deliciosas aulas de interpretaçao de portugues.Fui uma privilegiada quanto ao prof que tive, dos melhores e que mais saudades me deixara do secundario.. No livro , o que tenho gostado mais, acho que posso dize-lo, e o que se prende com as questoes filosoficas e praticas associadas que o conteudo nos suscita.. ate que ponto, por exemplo, as familias que levam os seus mortos ate ao outro lado da fronteira para terminar com a penuria, o sofrimento, a falta de dignidade de que os seus padecem nao sera legitima? ate que ponto nao podemos estabelecer ai um paralelo com a questao da eutanasia ou do suicidio assistido. As questoes relacionadas com o numero crescente de populaçao idosa, a banca rota da segurança social, o modo como tratamos as classes etarias mais elevadas hoje em dia, nao pode ser vista como uma questao menor, mas sim como uma questao actual com fortes implicaçoes sociais. Dai que seja louvavel a abordagem brilhante que o Gato Fedorento fez do tema, num dos melhores sketches que fizeram na epoca em que estavam na rtp:
http://www.youtube.com/watch?v=IHBcCHeRM44.

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by Ana on 7 de março de 2010 às 14:38. #

Eis como para ser cruel, não é preciso ser sanguinário, basta ser indiferente!

by Inês P. on 7 de março de 2010 às 17:22. #