da auto-ajuda (ou talvez não.).

por Ricardo Mesquita em quinta-feira, 11 de março de 2010


Podia começar por falar dessa tão afamada auto-ajuda. Dessa vastíssima secção que ocupa parte de qualquer livraria que se preze (ou despreze) mas que queira, em suma, sobreviver - são sinónimos, ao que parece. E é ver toda uma parafernália de céus azuis, rosas de cores muito vivas e sumarentas; títulos em que coexistem (nem sempre pacificamente) um sentimento - dos bons como nostalgia, saudade, alegria e afins derivados e um qualquer elemento natural - "ao luar", "na praia". ("no raio que os parta", não?). Podia descrever como quase tenho a certeza que aquelas capas são o pesadelo de um qualquer designer desesperado que finalmente percebe que devia ter dado ouvidos à mãe ou ao pai. Podia fazê-lo, mas deve-se começar por coisas menos indigestas, que ainda agora aqui chegamos e não queremos já dissuadir os leitores mais incautos que aqui tenham vindo parar por acaso do destino.


A auto-ajuda anda a fazer estragos, que é como quem diz a ajudar uns e a prejudicar outros. Esses que têm de presenciar episódios como o que aqui venho contar.


Elas eram duas - assim sentadas muito juntas num café de uma rua qualquer. Uma com a perna a estalar na licra num género "pseudo-nasty"; a outra mais discreta mas com uns borrões nos olhos que fariam uns murros nos ditos parecer uma benção do Altíssimo. Eram uma parelha perfeitamente inócua, não fosse terem o dom da palavra e uma vida para viver.


Sei que não se deve escutar conversas alheias mas, naquele caso o alheio tornou-se de todos os que, por acidente, literalmente, suspenderam as suas vidas naquele lugar, por uns instantes.


Começou uma: "Sou escorpião, Cristina. É o signo da paixão, percebes? É por isso que eu preciso tanto daquilo." Suspende-se brevemente aqui a narrativa dizendo que a libidinosa de licra movia os braços em gestos amplos quase enfiando o mindinho e até quem sabe todo o corpo no olho da interlocutora. Todo o público ouvia, fingindo à superfície com gestos como o trincar e o beber que nada daquilo era anormal. Eu, incluído.


A outra respondeu: "Escorpião é a morte. Por isso é que tens que lutar e deixares de enganar a tua própria natureza." Note-se, a breve trecho, que o lutar pareceu saído de uma qualquer cavidade visceral, arriscando-me a dizer que houve risco da senhora cuspir a pleura. Chamemos-lhe convicção.


"Morte? Desculpa, significa paixão. Por isso é que não consigo decidir. Eu sei que quero aquilo."


"Mas qual é o problema de escolheres?"
"Oh Cristina (que passamos a ser todos nós) até é fácil escolher. Este "cansa-se", percebes? E o outro não. Mas eu já não tenho 24 anos. E isto é romântico. E ele leva e dá."


"Mas tens que lutar para não negares a tua natureza. E tu não és assim. É porque não estava escrito."


Entretanto a conversa muda e a Cristina, que não sendo amiga de ninguém, depressa se fez intíma, continua: "Eu paguei 200 euros no "inxame". Ai meu deus, tenho que passar.


"- O destino há de querer que passes."


Com esta lapidar frase que pareceu encher (mais) Cristina de ânimo, a conversa continuou:


"Ele é psicólogo e a mulher dele de certeza que é tarada. Só ele é que ainda não percebeu."


"Temos que ir embora."


"Tá benhe. Vamos."


Foi isto que me foi dado como acompanhamento do lanche de hoje. Os diários intímos do Moby Dick e da amiga. E, de repente, todas aquelas secções das livrarias com conselhos de gente com nome de abelha; com livros que nos mandam ir aonde nos leve o coração, parecem estar a trazer graves consequências. "Está escrito, dizem." E eu penso para comigo como é que pessoas que mal sabem ler, conseguem perceber o que quer que seja.


E percebo que a maioria desses livros, desses que auto-ajudam, dizem o que as pessoas querem ouvir, não o que elas precisam de ouvir. E trazem um sol gigante na capa e promessas de volúpia na areia. E isso deve ser, certamente, "aquilo" que toda a gente quer. (ou não.)


PS: A palavra "rodada" não é um trocadilho ordinário sobre a menina nasty de licra.

4 comentários

Bom, e não ficaste curioso pelo resto da conversa? eu fiquei :p

by D. on 13 de março de 2010 às 02:30. #

Este comentário foi removido pelo autor.

by D. on 13 de março de 2010 às 02:30. #

Não pude deixar de rir, até porque me recordei de uma conversa parecida que ouvi há uns tempos atrás, na qual duas raparigas discutiam e louvavam os méritos de "O Segredo". Aah, que vontade de cortar os pulsos... xD

by Inês P. on 13 de março de 2010 às 10:08. #

Daniela, querias mais? As personagens entretanto desapareceram! :D
Inês, sim, imagino que tivesse sido uma coisa do género. Nunca pensei que uma certidão de óbito fosse uma boa notícia.ahahaha
Beijos.

by Ricardo Mesquita on 31 de março de 2010 às 12:31. #