#37 às terças

por TR em terça-feira, 1 de dezembro de 2009

“Há mais de um século, Victor Hugo declarava em carta a Brito Aranha que Portugal, por ter abolido a pena de morte, estava «à la tête de l’Europe» e justificava a asserção afirmando que «proclamer des príncipes, c’est plus beau encore que de découvrir dês mondes». Reconhecia nestes termos o maior, porque o mais universal e universalista dos génios do seu tempo, que os portugueses se tinham já libertado dos traumas da Inquisição castradora e enveredado pelo pioneirismo das grandes causas humanitárias.” (Ferreira de Brito, Joaquim de Araújo e a expansão europeia da Cultura Portuguesa, p. 9). Este tomada de posição de Victor Hugo reflecte-se, também, na sua obra literária (aliás, são os domínios do direito penal especialmente aptos a serem literariamente tratados).
De seguida, um percurso pel'"O último dia de um condenado" (Editorial Verbo (Livros RTP, 71), Lisboa, 1972)

O Tribunal.
“Havia três dias que o meu processo começara; três dias que o meu nome e o meu crime ajuntavam cada manhã um magote de espectadores, que vinham abater-se sobre os bancos da sala de audiências como corvos à volta de um cadáver; três dias que esta fantasmagoria de juízes, de testemunhas, de advogados, de procuradores do rei, passava e repassava diante de mim, um tanto grotesca, um tanto atroz, sempre sombria e fatal.”

“Estas poucas palavras, como o fio que quebra o voo do insecto, atiraram-me violentamente para a realidade. Voltei a ver de repente, como à luz dum relâmpago, a sombria sala de audiências, a ferradura dos juízes com as cadeiras carregadas de debruns ensanguentados, as três filas de testemunhas de caras estúpidas, os dois polícias nas duas extremidades do meu banco, e as roupas negras a agitarem-se, e as cabeças da multidão formigarem ao fundo, e fixar-se em mim o olhar penetrante dos doze jurados, que tinham velado enquanto eu dormia!”

O “sistema de recursos”
“Contemos o que me resta.
Três dias de espera depois de lida a sentença para a interposição do recurso.
Oito dias de esquecimento na secretaria do tribunal, após o que as peças do processo, como eles dizem, são enviadas ao ministro.
Quinze dias de espera no gabinete do ministro, que não sabe mesmo que essas peças existem, e que, apesar disso, manda, depois do exame, para o Tribunal da Relação.
Aí são classificadas, numeradas, registadas; é que a guilhotina está frequentada e cada um deve esperar a sua vez.
Quinze dias para verificar que não se comete nenhuma injustiça connosco.
Por fim, o tribunal reúne-se, geralmente à quinta-feira, rejeita em massa vinte deferimentos, e volta a mandar tudo ao ministro, que remete para o procurador-geral, que remete para o carrasco. Três dias.
Na manhã do quarto dia, o substituto do procurador-geral diz para consigo, enquanto põe a gravata: “Contudo, é preciso acabar com isto.” Então, se o substituto do escrivão não tem nenhum almoço de amigos que o impeça, a ordem de execução é minutada, redigida, passada a limpo, expedida, e no dia seguinte, desde a aurora, ouve-se na Praça de Grève martelar um madeiramento, e nas encruzilhadas gritar a plenos pulmões os pregoeiros enrouquecidos.”

As penas e os efeitos automáticos das penas.
“Apanharam-me, já tinha a idade, mandaram-me remar para a pequena marinha [galés]. É duro, as galés; deitar-se numa tábua, beber água transparente, comer pão negro, arrastar um peso imbecil que não serve para nada; levar bastonadas e apanhar o sol em cheio. Com tudo isto, tosquiam-nos; e eu que tinha um cabelo castanho tão bonito!... Não importa! Cumpri o meu tempo. Quinze anos, isso consegue arrancar-se! Tinha então trinta e dois anos. Uma bela manhã, deram-me um passaporte e sessenta e seis francos que tinha amealhado nos meus quinze anos de galés, trabalhando dezasseis horas por dia, trinta dias por mês, doze meses por ano. É o mesmo, eu queria ser honesto com os meus sessenta e seis francos, e tinha melhores sentimentos dentro dos meus trapos do que existem dentro de uma serapilheira de ave negra [padre]. Mas que diabos levem o passaporte! Ele era amarelo e tinha logo em cima forçado liberto. Era preciso mostrar isso em toda a parte por onde passava e apresentá-lo todos os oito dias ao maire da terra onde me obrigavam a vegetar. Bela recomendação! Um galeriano! Eu metia medo, e as crianças fugiam, e fechavam as portas. Ninguém me queria dar trabalho. Comi os meus sessenta e seis francos. E depois foi preciso fazer pela vida. Mostrei os meus braços bons para o trabalho, fecharam as portas. Ofereci o dia a quinze soldos, a dez soldos, a cinco soldos. Nada. Que fazer? Um dia eu tinha fome, dei um encontrão no carro de um padeiro (…)”

Os reclusos e a prisão.
“Todos os domingos, depois da missa, deixam-me no pátio, à hora do recreio. Lá, converso com os detidos. É um bem. Eles são boa gente, os miseráveis. Contam-me a sua vida, seria de causar horror; mas eu sei que estão a gabar-se. Ensinam-me a falar gíria, a rouscailler bigorne, como eles dizem. É toda uma língua enxertada na língua geral como uma espécie de excrescência hedionda, como uma verruga. Por vezes, uma energia singular, um pitoresco assustador; há chorume no andamento (há sangue no caminho); casar com a viúva (ser enforcado), como se a corda da forca fosse a viúva de todos os enforcados. A cabeça de um ladrão tem dois nomes: a sorbonne, quando medita, raciocina e aconselha o crime; o cepo, quando o carrasco a corta. (…) Dir-se-ia uma linguagem de sapos e de aranhas. Quando se ouve falar esta língua, sente-se o efeito de qualquer coisa de imundo e de poeirento, de um montão de trapos que sacudissem diante de nós.
Ao menos aqueles homens lamentam-se, são os únicos a fazê-lo. Os carcereiros, os ajudantes, os guarda-chaves – não lhes quero mal por isso – conversam e riem e falam de mim, diante de mim, como uma coisa.”
(p. 11,12, 25, 67, 19 e 20, respectivamente)

E, num conto na mesma edição, Claude Gueux, o apelo de Victor Hugo à humanização da sociedade e do direito.
“A questão, ei-la. A justiça, ainda não há um ano, retalhou um homem em Pamiers com uma faca; em Dijon, arrancou a cabeça a uma mulher; em Paris, fez, nas imediações de Saint-Jacques, execuções inéditas.
Essa é a questão. Ocupai-vos disso.
Vós vos querelareis depois para saber se os botões da Guarda Nacional devem ser brancos ou amarelos, e se a segurança é uma coisa mais bela que a certeza.
Senhores dos centros, senhores das extremas, o grosso do povo sofre! (…)
O povo tem fome, o povo tem frio (…).
Que provam estas duas úlceras?
Que o corpo social tem um vício no sangue.
Eis-vos reunidos em consulta à cabeceira do doente.
Esta doença, vós tratai-la mal. Estudai-a melhor. As leis que vós fazeis, quando as fazeis, não são mais que paliativos e expedientes. Uma metade dos vossos códigos é rotina, a outra metade empirismo.”

“E agora no lote do pobre, no prato das misérias, lançai a certeza de um futuro celeste, lançai a aspiração à felicidade eterna, lançai o paraíso, contrapeso magnífico! Restabeleceis o equilíbrio. A parte do pobre é tão rica como a parte do rico.
É o que sabia Jesus, que sabia mais completamente que Voltaire.
Dai ao povo que trabalha e que sofre, dai ao povo, para quem este mundo é mau, a crença num melhor mundo feito para ele.
Ele estará tranquilo, ele será paciente. A paciência é feita de esperança.”

Id, p. 145 e 146, 148

Um comentário

Muito bom!Excelente selecção! visitem o nosso blog em http://www.fiar-linho.blogspot.com/

by Mathilde on 3 de dezembro de 2009 às 01:32. #