# 33 às terças

por TR em terça-feira, 20 de outubro de 2009

O TEMPO E AS COISAS. 1
Há pouco mais de um ano, disse-me um amigo meu, na escadaria da FDUP:
"o pior dos livros é isso... esquecê-los".
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Falava dos livros. Dos livros, não dos autores, recheados de inocência. Fazem-nos - há sempre obras ímpares e tomar-se-á a parte pelo todo - flutuar, abrem brechas no nosso mundo por onde mais conseguimos ver, e estão sempre pronto a ser abertos para que os descubramos. E, ainda assim, esses livros que - apenas por momentos, sabe-se lá - nos revolucionam o mundo estão condenados ao esquecimento, aí a partir do momento em que acabamos de os ler, mesmo que nenhuma culpa tenham.
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Já outros chegaram a esta primeira asserção sobre o Tempo: só o que se renova vive. Não o que é bom, não o que é mau: só aquilo que se renova.
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A realidade chega-nos pelos sentidos, pelos quais formulamos juízos. Cada conjunto de sentidos ancora-se num dado tempo e lugar, reflecte a realidade em ideia, numa palavra, em duas, em três, e a ideia pode perdurar. Se se renovar, persiste. Se dela me lembrar diariamente, a ideia viverá, vencerá o esquecimento. Se a partilhar, se aquele com quem partilhar a renovar mais uma vez, a ideia persiste. Só o que se renova vive, esta a primeira asserção.
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Não assim com os sentidos. Algumas fotografias: um casal, uma paisagem com montanhas a recortar o horizonte, o mar, o imenso mar, um sol de fim de tarde, por mais que se olhe não se renova a alegria, a tristeza daquela hora, a profundidade do horizonte, a cor do pôr do sol.
Na hora em que se vê a foto, nasce uma nova sensação. Nostalgia? Talvez, ou qualquer outra coisa. Faz-se um novo juízo sobre aquele tempo, por ter perdurado a ideia de que aquele tempo era "bom" ou "mau".
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Segunda asserção sobre o Tempo: Os sentidos datados de cada instante não se renovam.
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E assim se depara com a crueza do Tempo, a crueza do passado, do ontem, que caminha sempre no sentido do esquecimento. O passado recebe um rótulo da razão e só assim persistirá. Recordo o que dizia o meu amigo, que o pior do livro é esquecê-los. Do livro falado então, já pouco mais sei que gostei, as quatro palavras do título e os três nomes do autor. O que esquecemos, o que lentamente vamos esquecendo, é o prazer que retiramos das páginas: não só as personagens, a história, mas principalmente o que fomos sentindo. Ficam só o rótulos de que a razão tanto gosta: "naquela altura apeteceu-me mudar o mundo". Mas já não tendo vontade de o mudar.
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Qualquer sensação nasce para morrer. O que muito custa.

3 comentários

as sensações são o instante em que sente e num outro já são coisa diferente, diferentes intensidades, diferentes formas de viver a mesma coisa que afinal não se alterou com o passar do tempo. é como os retratos: no segundo seguinte são aquilo que nos lembramos que sentimos ao viver aquele mesmo lugar. o ser humano é bastante tonto :p

by D. on 21 de outubro de 2009 às 00:20. #

Concordo contigo. Para a semana falarei, aliás, dos retratos. Ou melhor, das fotografias:)

by TR on 21 de outubro de 2009 às 10:48. #

"O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição."
Milan Kundera, 'A Insustentavel Leveza do Ser'

Porque a felicidade é o desejo de repetição, é graças a esse mesmo desejo que não me permito esquecer nenhuma citação deste livro, relendo-o todos os anos.
Porque só o que se renova vive, esta felicidade advém precisamente de, a cada leitura, constatar que algo na minha interpretação daquelas palavras se alterou em relação à leitura do ano anterior, que embora o que vejo escrito permaneça inalterado, a minha visão mudou de ângulo, amadureceu, construiu-se sobre novas bases, experiências e eventos. Renovou-se. E com ela renova-se o livro que se vê renascer perante os mesmos olhos.

Escrevia há tempos um texto inspirado pelo verso "Se morremos em tudo o que sentimos" de um poema de Sophia de Mello Breyner. Reflectia então sobre quão antagónico consegue ser que a nossa vida se construa sobre uma incessante sucessão de mortes e nascimentos. Porque nada em nós é intacto, de raiz - os nossos pensamentos e convicções iniciais moldam-se, por mais que o neguemos, ao sabor das nossas vivências, do contacto interpessoal. Morrem para dar origem a outros, morrem para se renovar e se aperfeiçoar, o mesmo acontecendo nas relações, que findam para abrir caminho a que outras despoletem. Só com as mortes simbólicas de partes de nós ou de circunstâncias que tomamos como constantes é que outras têm espaço para ser e para crescer, de outra maneira seriam asfixiadas pelas pré-existentes.
Daí que perante o facto de que tudo o que morre caminha para o esquecimento, cabe aos sentidos manter-nos vivos mediante a apreensão dos momentos que vagarosamente tomarão o lugar dos que, por força da distância temporal em que em tempos foram captados, seguem uma inexorável marcha em direcção ao jazigo. O instante em que morremos é aquele em que perdemos a vontade de repetir a sensação que os nossos sentidos apreendem.

by Marta Lima on 22 de outubro de 2009 às 02:01. #