Rapariga citadina parte para o campo

por D. em sábado, 4 de abril de 2009

Mais precisamente para uma aldeia transmontana encravada entre penedos, vinhas, muitas árvores de cortiça e amêndoa, rios, afluentes e outros que tais de que o nome não me recordo. Confesso que nunca tinha passado no campo mais de dois ou três dias, sempre em turismo, ou e no caso de ter ficado lá uma semana, com um grupo grande de pessoas da cidade, o que sempre ajuda a disfarçar a ausência de coisas. Confesso portanto que parti com uma certa ideia de confusão na cabeça sobre o que encontrar, o que fazer, com que serviços contar nas redondezas. Depois de gozada por achar que nas aldeias existe pelo menos uma farmácia para casos mais urgentes, já que qualquer posto de saúde fica relativamente longe entre curvas dementes, e pelo facto de não existir sequer um café onde matar o vício, lá parti com a mochila cheia de coisas potencialmente capazes de encher o tempo. Ou seja, vim com cerca de vinte filmes e uns cinco livros, além de trazer o portátil e a internet na esperança de arranjar um pouquinho de rede.

Ora, sucede que o campo se mudou. E embora tudo permaneça por fora igual, a verdade é que (e recordando um texto que escrevi há umas semanas atrás), é agora possível ter tudo ao dispor como se estivesse em casa. Existe agora rede de telemóvel em qualquer lugar e a própria internet funciona, o que faz chegar os recados e informações longe e rápido, o que nos permite inclusive continuar a trabalhar. Com a simples vantagem de que aqui se pode andar mais lento, se pode sentir uma brisa quente e abafada a mostrar um pouco daquele que será o verão por estas bandas, com o rio límpido a convidar a entrada dos pés e as flores sempre a pedir que se cheire (o que não faço, pois desde pequena que sei que o meu cabelo projecta nas abelhas um certo desejo de pousio, pelo que para evitar pânicos desnecessários, prefiro ficar quieta).

Mas contudo, aqueles que de cá são mantêm-se parados no tempo, entre aldeias onde restam poucos, muitos poucos, estradas sem condições, escolas fechadas, parques infantis sem gente, serviços totalmente ao abandono e uma permanente solidão no olhar, entre crenças, devaneios, mas contudo sorrisos sempre prontos para aqueles que da cidade chegam. Com as histórias de padres que se perdem em mulheres e no álcool, lendas antigas onde nasceram as terras e filhos de primos e primos que tornam a descendência contaminada geneticamente. Existe nessas pessoas uma expressão no rosto que lembra que o tempo aqui parou. E embora muitas coisas tenham cá chegado, elas não notam, porque simplesmente não sentem essa permanente necessidade de ter tudo na palma na mão, de ter todas as distâncias asseguradas em segundos sem precisar sequer de sair de casa. Existe uma evolução que parece apenas ser notada pelos de fora, existem gerações que permanecem anos atrasadas, como se vivessem num universo onde o ritmo corre com certeza mais devagar. E a única coisa que consigo pensar é como será possível viver sem expectativas no sítio onde crescemos, sabendo que os nossos filhos provavelmente vão passar pelo mesmo e sabendo que nunca se irá conseguir evoluir, porque simplesmente se foi esquecido por tudo o resto à volta.

2 comentários

E a única coisa que consigo pensar é como será possível viver sem expectativas no sítio onde crescemos, sabendo que os nossos filhos provavelmente vão passar pelo mesmo e sabendo que nunca se irá conseguir evoluir, porque simplesmente se foi esquecido por tudo o resto à volta.

Achei esta tua interrogação cheia de sentido.
Creio que a resposta está no mais profundo e insondável mistério da vida. Que naturalmente não sou capaz de desvendar. :)
Todavia, penso que, afinal de contas, a tua pergunta tem uma resposta. Que é empírica: essas pessoas vivem, esses locais são habitados, essas famílias continuam a linha hereditária. Acontecendo isso, num ambiente que tal como tu referes, desprovido de expectativas, então só há uma resposta possível: porque é possível viver a vida só por si. Enquanto existência. E não provará essas existencialidade vivida o quão bonita é, por si só, a Vida?
Mas bem, estamos também a esquecer que outras expectativas, de outro recorte que não o da nossas, haverão para essas pessoas... Parece-me a mim que em qualquer lugar, para qualquer pessoa, no meio mais isolado ou no meio mais calamitoso, haverá sempre expectativas. Nem que seja a de comer na próxima hora. Nem que seja a de sobreviver... A propósito disto, lembrei-me do prefácio de Nabokov aos "Contos" de Tchékhov: "..., o simples facto de estas pessoas terem vivido e talvez ainda viverem hojr, algures, na implacável e reles Rússia actual é uma promessa de futuro melhor, para todo o mundo, porque, de todas as leis da natureza, a mais maravilhosa é talvez a da sobrevivênciados mais fracos."

by Francisco on 5 de abril de 2009 às 13:02. #

Peço desculpa pelos erros ortográficos e pela falta de pontuação mas o meu teclado está adoentado.

by Francisco on 5 de abril de 2009 às 13:04. #