provedor de mim mesmo

por Francisco em sábado, 21 de março de 2009

Abrindo uma brecha no sigilo laboral do conselho editorial, queria dizer que ao ler umas linhas de Claude Levi-Strauss, percebi melhor o que o João Duarte nos quis transmitir com a sua muito própria reportagem sobre a pobreza. Confesso que nas reuniões nunca cheguei a entender como seríamos capazes de fazer uma reportagem sobre este tema que fugisse aos lugares-comuns de outras reportagens sobre o mesmo passadas na televisão, na rádio ou mesmo na internet. Não que lugar-comum tenha aqui uma carga necessariamente pejorativa; simplesmente porque achava muitíssimo difícil fazer algo original, inteligente e com rigor. Quanto ao tema em si, pouco há a dizer. É de uma dimensão humana, social e cívica cuja preocupação e luta exige, entre outras coisas, este tipo de intervenções: reportagens. Isto é, chamar a atenção e insistir para o que está mal (ou o que não está bem) e é preciso mudar. Incessantemente. Recusando piedosos fatalismos.
Todavia, mesmo consciente das minhas reservas, sempre duvidei de mim mesmo, quero dizer, sempre me interroguei se o problema não era meu em não conseguir percepcionar a reportagem brilhante que o João vislumbrava. Especialmente porque sempre que o João batalhou pelo tema, vi os seus olhos brilharem de enorme entusiasmo. Havia ali muita inspiração e sonho que eu não estava a conseguir assimilar. E como eu sou um sonhador em muitas coisas na vida, senti-me, não raras vezes, um bruto, por não acompanhar o João na discussão de ideias. Até por ser Director, juntamente com o impulsionador da ideia, o João, este aspecto mexeu comigo.
Entretanto, os temas foram a debate e votação democrática e, como é conhecimento de todos, o tema da Pobreza ficou de fora. Continuei a pensar na oportunidade que poderia ter passado, e na falta de acuidade que poderia ter revelado quando não apoiei o tema... Bem, quanto a isso não há nada a fazer. Quem sabe numa próxima edição. Não foi isso que me motivou a escrever. Foi sim o acima referido Claude Levi-Strauss (LS).
Em Tristes Trópicos, LS - entre outras coisas, etnógrafo - viaja por alguns dos locais mais recônditos do planeta onde observa e convive com tribos primitivíssimas. Observa, observa, observa. Tirando notas, assimilando ideias, estabelecendo comparações, indo ao fundo (do fundo) do Homem. O resultado final é um diário de bordo onde a Etnografia, sua primeira razão de ser, se enlaça com impressionantes ensaios de filosofia, sociologia e antropologia. É um estudo do Homem e das comunidades humanas de uma beleza e inteligência arrepiantes.
Numa dessas deslumbrantes linhas, quando se encontra entre as gentes mais miseráveis de uma Índia recentemente descolonizada (década de 50), LS escreve um capítulo, Multidões, que é então o leitmotiv de todo este meu escrito: nele vi finalmente aquilo que o João queria para a nossa reportagem. Se calhar até vi mais, mais não seja pelo facto da pobreza indiana ser quantitativa e qualitativamente diferente da nossa. À época e ainda hoje. Mas tenho a certeza que era um pouco isto o que o João invocava, enquanto conceito de reportagem: um trabalho terra a terra. Uma abordagem estudiosa, preocupada mais em conhecer e filosofar e menos em conclusões político-partidárias pomposas. É evidente que LS é LS, e não nos seria de todo fácil fazer algo desta qualidade. Mas aqui consigo então reaver o meu legítimo carácter sonhador, anteriormente pensado e receado que embrutecido para sempre...
Mas já chega de palavras minhas. Oiçamos Levi-Strauss:

Quer se trate das cidades mumificadas do Velho Mundo ou das urbes fetais do Novo, é à vida urbana que nos habituámos a associar aos nossos mais altos valores no plano material e no plano espiritual. As grandes cidades da Índia são uma zona; mas aquilo de que temos vergonha como duma tara, aquilo que consideramos uma lepra, representa aqui o facto urbano reduzido à sua última expressão: o do aglomerado de indivíduos cuja razão de ser é aglomerarem-se aos milhões, quaisquer que sejam as condições reais.
(…)
A vida quotidiana parece ser um permanente repúdio da noção de relações humanas. Oferecem-nos tudo, prometem tudo, proclamam-se todas as competências, quando nada se sabe. Somos assim forçados, de chofre, a negar a outrem a qualidade humana que reside na boa-fé, no sentido do contrato e na capacidade de nos comprometermos.
(…)
A mendicidade geral é ainda mais profundamente perturbadora. Já não nos atrevemos a cruzar francamente um olhar, por pura satisfação de tomarmos contacto com outro homem, pois a menor paragem será intepretada como uma fraqueza, uma brecha aberta à imploração de alguém.
(…).
(…) somos forçados pelo interlocutor a negar-lhe a humanidade que tanto gostaríamos de reconhecer nele. Todas as situações iniciais que definem relações entre pessoas são falseadas, as regras do jogo social alteradas, não há forma de começar. Pois, mesmo que quiséssemos tratar esses infelizes como nossos iguais, eles próprios protestariam contra a injustiça: eles não querem ser nossos iguais; suplicam, esconjuram-nos para que os esmaguemos com a nossa soberba, pois é da dilatação do afastamento existente entre nós que eles esperam uma migalha (que o inglês chama, acertadamente: bribery), que será tanto mais substancial quanto mais distendida for a relação existente; quanto mais alto me colocam; tanto mais espero que esse nada que me pedem se torne em qualquer coisa. Não reinvidicam um direito à vida; o simples facto de sobreviverem parece-lhes uma esmola desmerecida, que a homenagem prestada aos transeuntes quase não faz desculpar.
(…)
Há algo de erótico nessa angústia de submissão. E se o nosso comportamento não corresponde à sua expectativa, se não agimos cem todas as circunstâncias à maneira dos seus antigos patrões britânicos, o seu universo desmorona-se: não queremos pudim? Um banho depois do jantar do jantar e não antes? Nosso Senhor já não existe… O desânimo estampa-se-lhes no rosto; faço precipitadamente marcha atrás, renuncio aos meus hábitos ou às ocasiões mais raras. Vou comer uma pêra dura como uma pedra, um pudim de anona pegajoso, já que tenho de pagar com o sacrifício dum ananás a salvação moral dum ser humano.
(…)