dia e noite em Paris. Clepsidra de uma Festa Pós-Modernista

por Manuel Marques Pinto de Rezende em sexta-feira, 27 de março de 2009

Ramalho Ortigão corria nu pela pradaria em chamas, e eu sentia-me só. Sentia o abrasante calor da vida, pelo facto de as minhas peúgas estarem a fumegar. Também eu estava nu, mas em cima de um dodo. Ramalho Ortigão correu até mim, gritando a pulmões cheios "Ó Menezes, ó Menezes!" e assustou o dodo, que me derrubou no chão. Ajudou-me a levantar e espirrou para cima de mim, com tal força que me deslocou a omoplata.
Acordei
(começa aqui o relato cronometrado do meu dia de 23 de Fevereiro de 1921, em Paris, na rua da Brocherie. Paris tinha passado a ser a minha cidade a partir do momento em que descobri que Macondo, cidade onde vivi até 1917, apenas existia na imaginação de Gabriel Garcia Marquez. O hábito da cronometragem dos dias foi-me transmitido por um padre nestoriano, que mais tarde todos nós viríamos a conhecer como O Tangerina.)
09:00 - Acordo a gritar. Mais uma vez o mesmo pesadelo. Descubro que estou numa cama com duas pessoas. O quarto onde me encontrava, cuja decoração descrevo como um misto de Bruxelas e Parque Zoológico de Alfena, não era, de todo, o meu quarto.
09:05 - Descubro que adormeci no quarto de Sartre e Simone Beauvoir. A cara de Sartre lembrou-me o linguado que comi na véspera, por isso gritei mais um pouco e vomitei. Peço desculpas a Simone Beauvoir, mas procuro não olhar para Sartre.
09:15 - Descubro que há uma quarta pessoa no quarto, Henrique Maio. Estamos ambos comovidos com o reencontro, pois já não nos víamos desde 7 de Outubro de 1910, quando Henrique Maio divulgou às tropas republicanas o local onde me escondera, durante o rebuliço da Revolução. Abraçamo-nos e olhamos para Sartre, vomitando a seguir. Sarte pergunta a Simone Beauvoir se este dia não seria quarta-feira, e sendo assim, se não era antes a vez dele de dormir com ela.
10:30 - Recuperados do enjoo, Henrique e eu decidimos fazer uma bela festa comemorativa. Convidamos Chamberlain, que mais tarde descobrimos ser um socialista/fascista/medíocre cozinheiro. Convidamos Cesariny, que mais tarde descobrimos ser um gajo português. Não convidamos Hemingway, mas Rosa Luxemburgo (que mais tarde descobrimos ser uma mulher feia) ofereceu-se para levar duas garrafas de tintol.
11:30 - Aparece Guilherme Silva. Sartre protesta, afirmando que este se faz sempre convidado. Dominando o enjoo, Guilherme Silva, furioso, fulmina Sartre com o olhar, desmaterializando-o. Simone Beauvoir rejubila. Guilherme traz um bolo inglês.
12:oo - Chega Álvaro de Campos.
12:01 - Álvaro de Campos sai.
12:02 - Bernardo Soares chega. Com ele estão Wassily Kadinsky e Robert Florey. Este último senta-se em cima do bolo inglês. Guilherme Silva, furioso, fulmina-o com o olhar, desmaterializando-o. Grave consternação, toda a gente queria provar do bolo inglês. Henrique Maio prevê que o mesmo bolo aparecerá, segundo um imperativo aleatório.
13:00 - Chega Rosa Luxemburgo, num descapotável. Tiago Ramalho está com ela, e leva um bolo inglês. Pergunto a Henrique Maio se ele não terá uma centelha divina. Furioso, Guilherme Silva fulmina-me com o olhar, desmaterializando-me. Rematerializo-me, desta vez na personagem de Sara Morgado, que mais tarde descobrimos ser um dos Heterónimos de Fernando Pessoa, ou Pablo Escovar, ou Shakespeare, não sabemos. Surge a desconfiança de faltar alguém.
14:00 - O telemóvel de Guilherme Silva toca. É um dos editores do Tribuna, aquele que não tem olhos castanhos. Critica Silva por se atrasar nos prazos. Guilherme Silva, furioso, fulmina-o via telemóvel. Grave consternação. Rematerializo-me em Itália, e apanho boleia de Marcel Duchamp, porque ainda não tirei a carta. A minha mãe critica-me por isso. Guilherme Silva, furioso, fulmina-a com o olhar, desmaterializando-a.
15:00 - O bolo inglês estava estragado. Sartre publica um livro, durante a sua desmaterialização, e somente Pedro Passos Coelho o lê. O outro editor liga, mas Marcel Duchamp atropela-o na estrada para Turim. Grave consternação, mas Tiago Ramalho compromete-se a continuar as publicações no Bósforo, transformando-o num espaço idílico/bucólico dedicado a apreciar o mar. A consternação aumenta. Cresce o sentimento de que falta alguém.
16:00 - A festinha está para acabar, e está toda a gente muito feliz, apesar da estranha sensação de ausência. Reconhecemos que falta alguém, mas não sabemos onde está.

5 comentários

Muito bom.
A serio que sim.

by Guilherme Silva on 28 de março de 2009 às 14:25. #

XD tb gostei..

by Anónimo on 28 de março de 2009 às 14:57. #

Quem falta foi alguém que Guilherme Silva desmaterializou com o olhar ;)

by Sara Morgado on 29 de março de 2009 às 23:15. #

subscrevo guilherme silva, nao vá chegar mais uma desmaterialização

by TR on 30 de março de 2009 às 14:15. #

wtf? xD

by Ary on 30 de março de 2009 às 14:20. #