Paz&Espada

por Manuel Marques Pinto de Rezende em domingo, 7 de dezembro de 2008

Conversa no Café Odisseia...

O Sargento lá do sítio era um tal de Zé Vacas, tido em conta de sujeito parlamentar e desenrascado. De facto, não tinha problemas com os pretos da terra nem mesmo com os oficiais, e era muito normal naquelas bases de fim do mundo haver oficiais menores que não acatavam as ordens dos oficiais vindos de Lisboa. É que o pessoal da Guiné, há medida que ia lá estando, apercebia-se que de um continente para o outro se perdia a noção da realidade. Se na Guiné, mesmo no Mato mais cerrado e na última província, o soldado bebia Coca-Cola, fumava o que lhe apetecesse e depois, de 6 em 6 meses, podia torrar o soldo nas putas de Bissau, em Portugal a coisa não era assim. Coca-Cola nem vê-la, o tabaco até se conseguia a bom preço mas nem tão barato nem tão bom (comprar o tabaco nacional era, já naquele tempo, uma merda) e ficava-se por aí, porque maconha nem vê-la. E ir às putas era algo muito mal visto, a não ser que se fosse do Partido e se pudesse trazer as putas até si.
Lembra-me a história de um tipo da Artilharia 7, o Ptolomeu (nome poderoso para um rapaz das Beiras) que tinha, e eu vi isto, o maior pénis do Exército. Em Vila Real todos o conheciam porque ele se tinha metido com uma conhecida senhora lá do sítio, a mulher de um corporativista importante lá da zona, um tipo do Partido, com ligações ao Governo. Ele passou lá umas semanas nas jornas e nas vindimas, e a fama chegou aos ouvidos da dona corporativista. No entanto o Ptolomeu era um óptimo rapaz, tímido e apaixonado, que casou com uma menina da terra, a Luisinha, com pouco mais de 16 anos, tímida em excesso e enferma, que se recusava a dormir com ele com medo que ele a rasgasse. Para vocês verem o tamanho do caralho do Ptolomeu. Ele, sempre bonzinho e cavalheiresco, nunca lhe tocou. Mais tarde acabaram por ter três filhos, depois da guerra. Mas isso é outra história.
O Zé Vacas era de Cabo Verde, e era mulato. Mas era o mais patriota de nós todos. Vinha com toda a treta do V Império e dos heróis do mar. Como sempre esteve na fronteira, nunca branco e nunca preto, era cordial com todos, e achava-se o produto último dessa grande nação que era Portugal.
Eu nunca fui muito disso, no entanto.
O Vacas, como lhe chamávamos, fez um dia uma coisa horrível. Tinhamos sofrido bombardeamentos incessantes no acampamento durante toda a semana. E era a semana de rendição, em que vinha o 7º de Cavalaria tomar o nosso lugar durante a licensa. O pessoal estava desmoralizado, e os terroristas pareciam saber todos os locais onde as nossas defesas eram mais fracas. Morreram 8 camaradas nossos, todos gente boa.
No final de contas descobrimos que um tal de Tavares, que já se desconfiava ser comunista, trocava correspondência com o pessoal do outro lado.
Quando eu e o Vacas o apanhámos, ele escrevia mais um relatório, que entregava por um muleque da aldeia vizinha. O Vacas deu-lhe um sermão que ficaria na história se documentado. No final ele disse que se recusava a morrer pelos patrões capitalistas, pelo interesse do grande capital e pela opressão dos povos. O Tavares era um tipo confuso. Para o pessoal que ali estava, nenhum de nós lutava, nem pelo capital do Tavares nem pelo V Império do Vacas.
Lutávamos pelas mulatas de Bissau, pelas mercearias da Rua da Aurora, pelas 3 semanas de licensa na retaguarda, pelo soldo, pelo Spínola que era um tipo bacana mas de poucas tretas, e pela Luisinha.
Mandou o Vacas que deitássemos o Tavares num poço com sanguessugas, a vê-lo ser comido e sugado. Era um tipo bom. Tinha piada, mas dava nas vistas. Era filho de um médico, e era um miúdo, descobri mais tarde que tinha 23. Penso que fez aquilo que acreditava ser correcto. África tem destas coisas.