#12 às terças, quase como acaso

por TR em terça-feira, 23 de dezembro de 2008

ETNOCENTRISMOS
A estação de comboios está quase vazia, é natural, ao domingo de manhã ninguém abandona a corte para voltar à província, óbvio, o que acontece é o inverso, as pessoas laboram na corte e recuperam nas aldeiinhas, onde não há vida social, só natural, é só pastos, com vaquinhas e carneiros e gente rude que não sabe o que são “idiossincrasias” nem corrigir “eu disse-lhe a ele”, porque está certa a frase, então não está? Gente que comete “pecados mortais, que são sete, quando a terra não repete que são mais”. E que o são, são, os pecados da aspereza, rusticidade, filistelidade, passe o neologismo, se calhar não é neologismo mas sim erro, desculpem desculpem, queria dizer que é pecado ser-se filisteu, e se não é a terra reafirma-o e consagra o sujeito poético de Torga, no seu livro das horas, que perante si se confessa.


São pecadores, claro que são, cometem o pecado de não saber pecar. Reclamam, mas reclamam mal, sempre muito mal, barulho de mais, dizem que os da corte mentem, mentem muito, mentem com os dentes todos, como uma giga rota, e como muito mais, pasmem-se, todos nós sabemos que ninguém mente, existe a mentira?, o que se diz são inverdades, que é muito pior que a mentira, porque se quanto à mentira ainda se poderá discutir se é o oposto ou não da verdade, coisa para linguistas e filósofos, quanto à inverdade já poderá haver univocidade de sentidos, ora, ora, o in faz a inversão do que a seguir surge, ou assim o penso, logo inverdade é o exacto oposto da verdade. Pecadores, pecadores sem perdão do AAlto, o AAlto com dois A e em maiúscula, porque desconhecem a nouvel vague de la langue, dá-me vontade de rir, ah ah ah, gracejei e bem alto, talvez haja importunado os vizinhos, continuam a usar vocábulos arcaicos, devem pensar que a língua é sua, ironias, iro…


- desculpe, dona Emília.


A vizinha incomodou-se, terei de partilhar a causa do meu gracejo, fá-lo-ei, fá-lo-ei com todo o gosto, olhem como já sorrio,


- como certamente não ignora vossa gentil senhora, vivemos com dúplice linguagem. Oh, corrijo-me, claro está, língua há só uma! Queria vossa gentil senhora saber que, lá para terras de sol posto, os autóctones, perdoe o eufemismo, sei que perdoa, sei que sim, é minha velha veia misericordiosa, como bem conhece, continuam a dizer “mentira”. Veja lá, veja lá!


Dona Emília ri, ri muito, perdidamente. Que se percam lá pelas terrinhas a caçar veado e a molhar o papo seco, ou lá como lhe chamam, acho que o designam por molete ou, rústicos como são, até chegam a denominar de pão, não há por onde deixar de rir, dizia, a molhar o papo seco em vinho tinto, continuem com a sua língua arcaica, perdida já nos anais do tempo. A gente civilizada educá-los-á, com tempo. Inverdadeiros que nos causam asco.



Há os que, agora, domingo de manhã soalheiro, pouca gente nas ruas, muita mais pelas camas desta cidade irregular, irregular mas bonita, não há rusticidade como a desta cidade, nem bairrismo, o que aqui se fornece é a oportunidade de redescobrir as raízes, e o que os de cá têm é orgulho, nada dessa paixão infundada pela terra em que nascem, irracional e censurável, nah, nah, o que aqui há é completamente diferente, bairrismo não é a forma degenerada de orgulho, nem pensar, é outra coisa muito diferente, e com outras origens, ir-nos-íamos lá confundir com os recolectores que vivem pelos montinhos…

Um comentário

zzzzzzzzzzzzzzzzzz

by Me, Myself and I on 24 de dezembro de 2008 às 04:08. #