#8 às terças, quase como acaso

por TR em terça-feira, 25 de novembro de 2008

O homem de meia-idade acomoda-se na bancada improvisada, são dois degraus de pedra paralelos ao beiral que ladeia o campo, e fuma cigarro atrás de cigarro, soldados arregimentados num quartel chamado maço

- mas tu matas os teus soldados todos, ó palhaço?

- são carne para canhão, nunca ouviste dizer, ó tono?

E riem-se todos, assim se fala nas Alvinhas, onde as asneiras são dizer o que a alma não alimenta. O homem com não mais de 40 anos tem a pele gasta, rugas por todo aquele rosto deixado ao deus-dará, e quando pensa na bola já não sorri, que os tempos são de luto e infelicidade. Lá entra a equipa das Alvinhas, bandeira de cor verde e branca, recordando as verdes cores do lugar. Chegam de peito para fora, hoje é dia da foto em equipa, vem à frente o capitão de braçadeira em braço a comandar os heróis do povo em júbilo, faz o sinal da cruz na linha de cal e olha para o céu,

- Que não tenha nenhuma lesão e que os cabrões percam.

E o que vem em segundo também faz uma reza, pensa na filha Eunice e como a bola já é um custo, a filhota quer ver o pai à noite e o pai já não ignora o sofrido “papá, porque é que hoje não ficas em casa?”, ainda há dias falara disso com o mister

- tu precisas disto para viver, gigante. Se tu sais outro entra; a tua filha tem muito tempo para estar contigo

E por isso hoje está em campo, mas continua a pensar na pequena, olha para a bancada e vê-a, está com outras meninas a brincar com umas pedras vistas ao canto. “Eunice, Eunice”, e a miúda olha de rosto amuado, e o pai tenta pensar na bola, é disso que ele precisa, o mister ainda há uns dias o revelara. Os outros também chegam, ao todo são onze, entram de rostos obstinados e duros, vamos vencer, vamos vencer, o guarda redes entra de fita vermelha no cabelo, chamam-lhe iguita, mas o jogo é só daí a pouco, agora é para tirar a foto para os anais, vamos lá aproximar-nos.

O homem de meia idade endurece o olhar e aproxima-se do beiral

- seus vendidos! De cor branca! Vendidos!

E os jogadores perdem o conforto, há um que está de peito para fora, é o Fonseca, o branco é a cor da grande equipa do distrito, clube que apelida de seu desde que se conhece,

- tem calma, Zé, tem calma.

- tem calma? Os palermóides dos directores andam para lá a chular o Alvinhas! A cor da equipa sempre foi o verde e branco, é a cor da bandeira, é a cor do clube, e agora é todo branco com o estupor da risca azul no meio, parecem reis, deviam era ter dignidade! Nós somos verde e branco! Até a porcaria do patrocínio é a mesma merda! – e volta ao soldado feito de tabaco, está transtornado, e o nervosismo alastra…O público entra em polvorosa, chovem insultos para o campo, o alvo já não é o árbitro ou o juiz auxiliar, os insultos já não aludem à bandeirola amarela e laranja que lhe serve de instrumento de trabalho, os directores são apupados,

- Até a bandeira tiveram vergonha de hastear

E uns quantos olham para o fundo do campo e não vêem a bandeira do Alvinhas, o seu verde e branco escolhido pelos 25 fundadores da colectividade naquele 17 de Outubro de 1968.

O fotógrafo tira finalmente a foto que hoje vejo em frente. Não se vislumbram 11 jogadores alinhados, 6 atrás e 5 À frente, mas um aglomerado de selvagens a dirigirem palavras ao fotógrafo, ou aos que atrás deste se situam. Há no entanto um homem procurando manter-se hirto com os olhos marejados de emoção, um outro de rosto envergonhado e um último, o Fonseca, de sorriso no rosto inteiro e peito para fora. À noite, pelo menos é o que contam, dirá no bar da sede

- Agora sim, temos um equipamento à Castelo Maior, branco com franja azul.

E pelos vistos um homem de meia-idade não identificado aproximar-se-á de punhos fechados e desferirá um golpe no rosto do Fonseca. Chegarão a cair gotas de sangue. Mas dirão que a honra do Alvinhas ficou reposta.

Um comentário

de facto, o Alvinhas está a atravessar uma má fase...
quando se muda radicalmente as cores de uma bandeira, é sempre mau sinal...

by Manuel Marques Pinto de Rezende on 25 de novembro de 2008 às 17:47. #