# 5 às terças, quase como acaso

por TR em terça-feira, 4 de novembro de 2008

À ESTRADA

E finalmente quando crescemos, aprendemos que nem tudo se pode saber de cor. O amor não se pode saber de cor. Como eu não sei de cor porque já não durmo há um ano seguido. Lembro-me que há uns meses passei por este mesmo lugar e estava uma criança deitada que me pediu caramelos. Esvaziei os bolsos nas mãos dela e segui viagem. Lembro-me que talvez tenha parado por aqui e tenha visto algumas mulheres a carregar as suas trouxas. Mas este lugar não me deixou especial saudade. Não sei por que a estrada me trouxe aqui de novo, fiquei a com a sensação de ter seguido no caminho oposto. Contudo, este dia soa-me mais agradável que o outro. Sabe se por acaso é possível neste país conversar com as pessoas que passam? Ou apenas se pode falar com os guardas? Eu lembro-me que um dia deixei uma mulher ficar plantada na cama de um hotel de que já nem lembro o nome e falei com um guarda para que lhe fosse deixar um recado não fosse ela pensar que eu tinha sido raptado. Não sei se é desse tipo de guardas, pelo seu rosto vejo que parece não estar a ouvir o que digo, talvez esteja. Olhe, sabe onde posso trocar estas moedas por cigarros? Daqueles que têm sabor de mentol. Esses fazem menos mal aos pulmões e eu sou um homem saudável. Olhe, até costumava entrar em jogos de futebol em estádios vazios. Não era um Maradona, mas sempre sonhei em vir a sê-lo.

O meu avô também era guarda, como o senhor, dava graxa às botas e puxava o lustro às divisas. “Hoje é dia de campanha”, lá dizia, e batia a porta com brusquidão. Chegava a casa pelo crepúsculo e bebia pela noite fora. O senhor é igual? Continua sem parecer ouvir, nesta terra todos emudeceram, que terrível medo desceu sobre o lugar. Eu quando era criança cantava alto nos passeios e apalpava as pernas às garotas. Era bizarro. Aqui os pequenos estão calados, são como os adultos, só abrem as mãos para pedir caramelos. Toma, menino. Sê feliz. Sei que tenho bigode farto e farrapos a escoarem pelo corpo, talvez por isso me peças o docinho sem medo, não pareço grande.

Está tudo tão escuro. Já não há mulheres no cruzeiro, foram-se com seus pecúlios. E as flores do cemitério estão amarelas. E o café fechou, levando o Sr. Abílio e o seu licor de pêra. Minha senhora, diga-me, onde vende cigarros? Ela passa e não me ouve, faz-me lembrar a senhora da botica lá da aldeia com a sua verruga no lábio. É que a aldeia era tão bonita. Íamos então em cantigas fazer fisgas para atirar pedras às laranjas. E depois fazíamos a confissão com os dedos cruzados, o indicador e o médio, e dizíamos não ter pecado. E nadávamos nus no rio a lembrar a garota da mercearia, que era a Marianinha.

Tenho andado tanto que de cor já só as dores nas pernas e as noites em vigília coleccionadas. Onde estás infância? E para onde foste, meu amor? Já não te vejo nos pinheiros do caminho nem nas águas dos ribeiros. Talvez te tenhas escondido. Lá vai o menino dos caramelos. Agora não se deita, o pequeno. Anda a puxar a cauda aos gatos e a perseguir os cães com paus afiados nas mãos. A tua inocência, onde vai ela? Tem os olhos tristes, certamente que a perdeu. Só ouço o silêncio, já ninguém gosta de sair à rua, as boutiques querem fechar. Toma lá dois rebuçados, criança, mas não os atires ao chão. E sorri. Fica a pensar que o estrangeiro gosta de ti.

Além vejo a placa para o santuário, diz serem 12 km. Vou por lá, há uns meses andei por esses lados e agora as videiras já devem ter uvas em ponto para as vindimas. Devo roubar algumas. Adeus senhor guarda, foi um prazer a conversa. Adeus benfazeja terra, tanta vida que alimentas. Adeus menino dos caramelos, és um anjo sorridente. Dizem que lá para o santuário houve um milagre há muito tempo. E depois as gentes lá foram assomando e encomendando orações. Pode ser que me engane no caminho e não vá lá ter. Talvez assim chegue ao meu destino.

O primeiro parágrafo não é da minha autoria, mas da Daniela [Ramalho]. Um duplo obrigado: pelo texto que (nos) deu, e por mo ter deixado desenvolver. Sendo menina, o agradecimento veste a forma de beijinhos (abraços só para senhores).

Um comentário

a tipa escreve bem. mas a continuação também não está mal :)

by D. on 4 de novembro de 2008 às 22:30. #