#1 às terças, quase como acaso

por TR em terça-feira, 7 de outubro de 2008

Café com cheirinho

E de manhã lá chego, barriga vazia e fome de algo, coisa pouca, coisa pouca, de manhã pouco chega-me. “Meia de leite, senhor”, penso mas não digo, peço só “meia de leite”, o “senhor” está subentendido e para bom entendedor meia palavra basta. Ou se calhar não, se calhar palavras várias urgem ser pronunciadas mas sei lá, um provérbio fica sempre bem, ou se calhar é um brocardo, é o que for, provérbio ou brocardo, mas fica bem, por certo. “E um pão com manteiga, não há pão como daqui, não é?”, digo. Não digo, mas podia dizer, que importa? Afinal, o dito cujo – o senhor – vê-me cá todas as manhãs, percebe que o pão é bom, claro que percebe, porque se não conhecesse porque raio iria eu lá todas as manhãs? Até pode ser que tal não reflicta, pode, de facto e de impressão, pode acontecer que o dito cujo, perdão, o senhor, ignore minha motivação e até se alegrasse com umas simpáticas palavras de um jovem barbudo que tantas vezes por lá passa. Não importa. O que releva, gosto do verbo relevar, hei-de usá-lo mais, é que eu lá estou e peço um pão com manteiga. Sem mais. Chega-me, é suficiente, o dito cujo, perdão de novo, o senhor, desculpem tantos perdões, afinal não careço da vossa graça, sou eu para comigo e vós para convosco, andamos todos sozinhos, não é? Perdi-me, ah, dizia que chega dizer pouco, chega “pão com manteiga”, e pão com manteiga estará ao balcão. Com o sabor de sempre, aquele que me leva a voltar aqui, olhar para o senhor e pedir: uma meia de leite e um pão com manteiga. E no dia seguir volto. E não tenho de ser simpático.

O outro chegou, Zé Agostinho de nome, ou se calhar não, mas para agora serve. Zé Agostinho por qualquer razão, o pai era Zé, o avô Manel, mas a mãe preferia Agostinho, pronto, que se há-de fazer? Aproxima-se do balcão e pede o costume, aquilo de sempre. Eu olho para ele e desconfio o que quererá, e aconchego a barba, que debaixo da barba há sempre algo escondido, sempre, sempre, uma barba serve para esconder nem que a ausência de algo a esconder, mas agora isso não importa, dizia, desconfio que beberá um café aromado, alegrante, gostoso. Não, gostoso não, gostoso é para brasileiros (e brasileiras), e ele é português, grama a bola e já é muito, labuta por obrigação e bola por atracção, sim, sim, estamos perante um de fibra. Bebe o café, como eu bebo a meia de leite, ou se calhar mais rápido, e fica igual, café todos os dias torna o café como o ar, também ele, de todos os dias. Nele não pensamos e dele dependemos.

Olho para a frente e vejo um papel velho – embora já gerado por essas máquinas, os computadores, impresso nessas coisas, as impressoras - que avisa “café com cheirinho, 0,50€”. O Detective – leitor desatento, o detective sou eu, capiche? – encaixa a última peça do rústico puzzle que gerou. O Zé Agostinho, que se calhar não é Zé Agostinho mas Aníbal Fonseca, que importa, bebeu um café com cheirinho, o malvado, bebe álcool desde tão cedo, ainda é manhã, os olhos estão esbugalhados e ele já emborca bebidas do demo. E se o café fechasse o do lado abria, e venderia café com cheirinho e análogos produtos, para o Zé Agostinho e o Aníbal Fonseca irem lá começar o dia pela maior. À falta de sopas de cavalo cansado, chega o café com cheirinho rejuvenescido e rejuvenescente, licor para o dia, pedra filosofal que transmuta o corpo de fel em corpo de mel.

Também eu, talvez num dia chuvoso, com as nuvens como céu e as valetas como frondosos riachos, e também em tempos de estudo muito, e ainda também também com nervos saltando pelas órbitas e cansaço escorrendo de cada poro deste corpo (tenho muitos), olhe para o Zé Agostinho e pense. E, já agora, também, diga,

- Senhor, era um café com cheirinho.

E o senhor servir-me-á, eu beberei o cafézito, e porque alegre, a bebidita assim o impõe, sorrirei ao dito cujo, sairei da padaria e sentir-me-ei irmão do Zé, do Zé Agostinho, comigo unido, nem que por um dia, no ritual do café, mas com cheirinho. E o dia vai ser especial, muito muito, ou excepcional, que é o mesmo que especial ao quadrado, tanto que ao contrário da lógica geral, ou sentido geral, ou sistema geral. Tão excepcional, excepcionalíssimo, que convido o estimado leitor a acompanhar-me. As senhoras não se assustem, também há compais e leites com chocolate e, se audácia houver, um carioca com cheirinho, eu pedirei ao senhor, o dito cujo, com todas as palavras e de sorriso aberto, fica ao meu encargo. Há também bicos de pato, regueifas, pães de toda a ordem. Há que amaciar o efeito desse álcool sob pena de perderem a compostura e, pior, a vergonha. Firmados os pressupostos (esta saiu bem, não?), aceitam?

3 comentários

parabens =D
gostei mm!

by Anónimo on 7 de outubro de 2008 às 12:03. #

subscrevo

by Inês on 7 de outubro de 2008 às 14:43. #

Tambem gostei sim.
:D

by Guilherme Silva on 8 de outubro de 2008 às 01:41. #