Porto da minha infância
A cidade, como entidade viva, muda ao longo das eras. Transmuta-se de velha para nova. Velhos edifícios, pelo tempo corroídos, dão lugar a novas edificações já não de pedra, locais mais acanhados e frios.
A cidade transforma-se com o tempo, e com ela vão-se encontros casuais do dia a dia, pessoas que passam, lojas que fecham, locais que mudam. Resta-nos então a memória, a triste e magoada recordação dos espaços e dos seres.
A minha cidade de infância. Por vezes ela aparece-me no recanto mais escondido da alma. Surge-me também em longos passeios-peregrinações, no casual encontro com um elemento do passado. E em cada recordação mais forte o sentimento de pertença. Maior o amor que se têm a esta «mátria» a que chamo Porto, a que chamo lá no meu íntimo casa.
A velha rua que fazia ligação da baixa ao rio Douro ainda hoje parece suja. Aqui e ali, no entanto, a novidade se apresenta. A velha mercearia que meus familiares frequentavam transformou-se numa loja de chineses, locais onde tantas vezes o barato sai caro. O velho e gigantesco fontanário à noite ainda mete medo devido à sua amarelenta e fraca iluminação. A calçada ainda é de paralelo e não de alcatrão. por vezes, tentando criar em mim uma espécie de hipnose, regresso atrás no tempo e vejo esta minha cidade como era antes. Os tróleis a passar pela rua, sempre a perderem o contacto com a catenária. ouço ainda em mim os seus barulhos peculiares. O trânsito caótico ao final do dia. Afinal a cidade ainda só tem três ou quatro pontes.
E ali em baixo, já quando a memória avança para anos mais finesseculares, vejo um cãozito, daqueles de raça estrangeirada e que estão na moda. Passeia-se no velho jardim onde as pombas fazem companhia ao navegador. Ainda é novo. Sentados num banco, junto à estátua, alguém explica ao senhor reformado e ao neto que o cão foi caro. «Uma prenda do filho à mãe». Anos se passaram. A cidade mudou. O tempo avançou. Destruiu e reconstrui-o. O jardim passou a oferecer outra configuração. Sentados nos modernos muros, a criança que fora neto, acompanhado por uma pessoa que com atenção o ouvia a falar sobre o seu passado, reencontra o cão, já velhinho. Perseguem-no pelas vielas da ribeira e descobre a dona. Descobre, então, que o cão é o mesmo. E que todos os dias ali volta, sozinho e já mancando de uma pata, ao já mudado jardim. Alguma coisa ainda se conservava do passado. Seja na memória, seja na presença física dos seres. Mas naquele momento presente porém, mais passado e mais peso de o carregar espreitavam.
Memórias, tantas memórias. Algures afirma Nietzsche que o problema do Homem, o ele ser nihilista, é ele ter memória. Mas como eu protejo tanto estas recordações que me fazem sofrer por já não as poder reviver. Como eu me sinto por vezes portador de outros tempos. De uma cidade que cresceu em mim e para além de mim. De um Porto que já não existe e já não volta.
Reflexões nihilistas após a visualização, em Serralves, de «Porto da minha infância» do Mestre Manoel de Oliveira. Uma breve nota: o Porto teve escritores "emprestados". Camilo, Eugénio, Agustina, Manuel António Pina, só para citar alguns, não nasceram no Porto mas aqui se «deram», na belíssima expressão de Eugénio. Nasceu cá e recordou-a nos seus filmes o "nosso" quase centenário realizador. Uma arte parece ter compensado outra...
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