Da falta de cuidado

por D. em sábado, 4 de outubro de 2008

Nos amores que se dão em tempos de cólera muitas vezes a cegueira instala-se e os homens tornam-se descuidados com as mulheres suas amantes. Garcia Marquez embala-nos com as suas histórias pouco improváveis de alguma vez terem acontecido, ou virem alguma vez a suceder-se. Hoje acordei com uma gargalhada que se soltou ao ler este pequeno excerto: nas entrelinhas, tantas ilações como aquelas que são permitidas aos leitores de acaso.


"Seis meses após o primeiro encontro, viram-se finalmente num camarote de um navio fluvial que se encontrava em reparação de pintura no cais fluvial. Foi uma tarde maravilhosa. Olimpia Zuleta tinha um amor alegre, de pombeira alvoraçada, e gostava de ficar nua durante várias horas, num repouso lento que para ela tinha tanto amor quanto o amor. O camarote estava desmantelado, pintado pela metade e o cheiro de terebintina era bom para se levar como recordação de uma tarde feliz. Então, por culpa de uma inspiração insólita, Florentino Ariza destapou uma das latas de tinta vermelha que estava ao alcance do beliche, molhou o indicador e pintou no púbis da bela pombeira uma flecha de sangue dirigida para sul e escreveu-lhe um letreiro no ventre "Esta pomba é minha". Nessa mesma noite, Olimpia Zuleta despiu-se à frente do marido sem se lembrar do letreiro e ele não disse nem uma palavra, nem sequer se lhe alterou a respiração, nada, apenas foi à casa de banho buscar a navalha enquanto ela vestia a camisa de dormir e degolou-a de um só golpe."


"O amor nos tempos de cólera", Gabriel Garcia Márquez





Daniela Ramalho

Um comentário

Não é assim tão improvável.
Também já me aconteceu...

by Guilherme Silva on 4 de outubro de 2008 às 19:53. #