A MELHOR JUVENTUDE
E naquele sábado deste Outubro, o amigo rasga-me a tarde com uma chamada
- queres ir ao cinema?
E a palavras meias de cá e lá aceito, meus senhores e minhas senhoras, eis dois intrépidos perante Fellini, vejam como a vida é doce. E ao filme outro sucede, chega um terceiro e quarto. Um quinto?
- São 3 horas de filme…e vezes dois. Há primeira e segunda parte. 6 horas ao todo.
Como? Renitente para comigo, lá aceito, entro de olhar quase cínico e pronto a desancar o Marco Tullio Giordana, o sacana, até rima, o maldito tão tem pudor algum em encher os bonacheirões com mais de 3 centenas de minutos, 3 centenas, caríssimos, permitia realizar 4 filmes (uma sequela) ou uma minisérie em 6 episódios, 7 se americana, ou até 8, maldito latino, sempre a confiar na eterna paciência do senhor da casa ao lado. E nesta exasperação entro na sala, e o filme já vai correndo, eu olho para a tela, e começo a reter isto e aquilo, conhecendo pouco a pouco o Nicola, e depois espreito para lá e vejo o Matteo (em que ano tudo se passa?), e olhem a Geórgia aqui surgindo, e o filme não é tão mau como isso, espreitem novamente o Nicola a viver a sua vida, e o Matteo também, o Matteo, caríssimos (força irmão!), e mesmo sendo noite do lado de lá da escadaria a imagem enche-se de azul e pedra, e de vidas que se cruzam e entrecruzam, são tantas, sucedem-se em sinfonia, agora estou a gostar, sim,
(ecrã negro) Maldito intervalo, morre! E morre sozinho, numa cama sem ninguém em vigília. E numa noite fria sem gatos pelas ruas. Mas não temas, intervalinho: não será funeral vazio. Terás vento, terás luz do sol, terás esse tão notório calor de Outono.
(Registo factual. Tiago. Duas semanas antes. Reiterou as palavras passados 7 dias do momento supra. “Estes intervalos dão mesmo jeito. Dá para esticar as pernas, ir ao quarto de banho, conversar um bocadinho”)
O filme recomeça (adeus, ó intervalo!) e o Matteo continua a sua vida (filme 1 – 0 intervalo), e o Nicola também (2-0), e tantos outros seguem seus propósitos, vão surgindo (3-0), desaparecendo (4-0), reaparecendo (5-0), e a história corre até nós, lá vivemos a nossa melhor juventude por essa Itália, cidades bonitas, mulheres ainda mais, e vou vendo a tragédia e a comédia, somos nós e aquele de barba dura, e aquela de olhar penetrante, e o outro de óculos de massa, e a menina de um amor em ebulição, e qual filme?, vejo os jovens em pelota dançando à frondosa cascata, todos estamos nessa Itália a caminhar para o fim do século, que país!, tem idealistas e terroristas, e lá vivem seres humanos, são da nossa espécie, olha os jovens que dão os braços para o próximo, seres humanos, palavras tão quentes, são homens e mulheres nessa bela Itália,
FIM DA PRIMEIRA PARTE
Anuncia o lacaio das legendas, e rompe-me a harmonia que já sentia, adaptar-me-ei ao infortúnio surgido, fá-lo-ei, e quase um dia depois quedo-me à porta, o amigo e eu entramos antes do filme começar, como será?, irá defraudar a expectativa?, debatemos as interrogações, e a história recomeça, nunca parou, estes sempre estiveram ali a viver, que vidas!, eu já os conheço, são sorrisos de desarmante familiaridade, conheço-os, a sério que sim, e provocam-me, agora queria voltar à infância e perguntar ao meu pai
- é possível uma hora durar 12 minutos?
- não, Tiago. Duram sempre 60.
E diria, sei que o faria, estás enganado, papá, estás estás. Porque o filme avança, mais Itália, e não avança em horas, mas num sopro, um sopro do tamanho de um olhar, um impasse, só um momento, e essa Itália tão bela, belíssima, como acabará tudo isto?, olho para a tela e o plano está a desaparecer, acabará agora?, sinto-me alarmado, olho para o relógio
20h45
Ainda vai durar mais, tem de durar, acho que passa das 9, tem mais história pela frente, avança ó maldita, avança tão rápido quando possas, quero-te conhecer, dá-te, eu estou aqui e vejo-te, abranda-te ó apressada, queres fugir?, foges de quê, eu quero ver-te, quero aquele sorriso de novo, e aquele olhar, e aquela fotografia (que belo olhar da fotógrafa!), quero ver esse balão azul a subir para o céu, quero esse homem que emociona, que feitiço, o feitiço, eu não acredito nessas artes negras, deve ser dos Marcos Túlios, há o Cícero e o Giordana, os seus ecos prolongam-se para lá das suas obras, enredam-nos nos seus projectos, maldição, é macumba, deve ser dos italianos, não, não, isto não acontece, não pode, isso não, não olhes assim rapaz, não fales assim, não sejas assim, mas acontece, e eu levo a mão ao rosto porque choro, e olho para as paredes para não ver aquilo, e volto-me para a tela e emociono-me, e depois virei a pensar que a realidade está muitas vezes além da nossa vontade, a realidade é sempre maior que a nossa razão, e nisto me quedo,
FIM
O filme acaba?, como? O filme acabou? O filme acaba, presente, o filme acabou, pretérito perfeito. O filme acabou. Passado. Acendem-se as luzes do cinema, podia ficar escuro, quero que fique escuro, as luzes estão acesas, as devassas, eu quero debruçar-me de braços cruzados e tombar a cabeça no banco da frente, mas as amarelas estão a brilhar, estou tão cansado, vivi tantas vidas, quero descansar, deixem-me descansar, mas as luzes iluminam, levanto-me como os outros, as pernas fraquejam, arrasto-me como os outros, vou em silêncio como os outros, é que vi tanta alegria, e sorri, vi tanta cobardia, e enraiveci-me, vi o medo, e tremi, e vi a esperança, e emocionei-me. E tudo desapareceu.
- - -
Talvez um dia lá para a frente, nesse tempo a longo prazo, a minha pequenina chegue ao meu lado e pergunte
- papá, como é o cinema? E aí vou recordar conversas do passado.
(- Noronha, lembras-te d’A melhor juventude?
E ele saberá que me refiro a um tesouro, achado e visto em duas noites de Outono. E a senhora do lado que chorava, e a menina da frente que ria, e o homem lá de trás à direita que se revoltava também saberão. Um tesouro encontrado pela mais nobre primeira pessoa: o nós.)
- oh meu amor….o cinema é uma coisa maravilhosa!
- como a mamã quando está feliz?, perguntará de ar intrigado.
- sim, sara…mais ou menos isso - E rir-me-ei.
5 comentários
"Tudo é belo..."
E o que aqui me fizeste recordar e sentir de novo é belo. Belíssimo.
Um abraço forte
"Foda-se oh Ramalho...."
"Foda-se oh Noronha..."
by Tribuna on 28 de outubro de 2008 às 17:35. #
Enganei-me. Mas de qualquer das formas, acho que o Tribuna partilha da ideia de que "Tudo é belo"...
Quem não partilha?
by Francisco on 28 de outubro de 2008 às 17:37. #
bem, este texto deixou-me com muita vontade de encontrar esse filme e de o ver também... nunca vi nenhum filme que me fizesse ficar tão tocada e com vontade de escrever um texto e de sonhar... também quero :P
by D. on 28 de outubro de 2008 às 20:12. #
Devia ter ido...
Fui filisteu, lixei-me.
by Guilherme Silva on 28 de outubro de 2008 às 23:59. #
Subscrevo o comentário do Guilherme...
by Inês on 29 de outubro de 2008 às 12:05. #
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