#3 às terças, quase como acaso

por TR em terça-feira, 21 de outubro de 2008

UM

Senhores do mundo betuminoso: estou só, a janela fechada, a mesa vazia. A cama por fazer, ou se calhar nem tanto, é um colchão amarelado descido ao meio. Livros também, ali ao canto, no chão, por baixo da carta topográfica escala 1/25 000, edição Instituto Geográfico do Exército, onde a risco vermelho se marca este paralelepípedo irregular onde me acho. Falava de livros, que são dois, é plural, o pavor a homens de um só livro não me abandonou, a ilha de tesouro do Stevenson, e também um outro, Helena, de Machado de Assis, historieta de amor como tantas outras, chega para entreter. O ambiente é pesaroso e cheira a dor, olhem para o canto e vejam os 21 círios que fazem vigília.

- o menino tem sede?

Pergunta-me a gentil Maria, quanto mais velha mais doce, sim, tenho sede. Sede e saudade, palavras tão parecidas, ter saudade é ter sede do passado. Um dia quando era novo, ao menos de espírito, tinha definido saudade. Aí fui senhor do mundo, defini o que julgava indefinível, e pobre de mim a fazer de rei que vem a descobrir andar nu. Aqueles fizeram troça de mim, e perdeu-se um linguista. Dizia que saudade era

Saudade. nome fem. nostalgia para com algo que nos é querido.

assim viria nos meus dicionários, seriam dois e reactualizados a todo o tempo. Andaria de terra em terra com bloco de capa negra em punho, falaria com os senhores das terras e os lacaios das cidades, registaria novas palavras, corrigiria as velhas, guardaria a língua em grossos volumes que serviriam de apoio a essas minhas obras de amor.

- Maria, desculpa, podes-me chegar a água, por favor?

A Maria aguardava à porta, coitada, olhava para os passarinhos que flutuam por essas árvores, tão frágeis e sempre vivos. E eu que fui robusto, e senhor de todos os sonhos do mundo (são muitos, mais de 20 volumes de folha encarquilhada), fico-me quedando perante o papel, a fazer não sei o quê. Enquanto escrevo estou à tona, e se o não faço vou ao fundo. É um lugar negro, pior que o da saudade.

- Tome, menino.

- Obrigado Maria. És uma santa.

Sempre me chamou menino, mesmo quando o não queria. Dizia-lhe

- Não me chames menino, Maria! Fogo…

- Está bem, menino.

Dizia-me, sem maldade. Fui sempre menino, olhos de gato, como dizia ela, há-de ir longe, como também dizia, ser engenheiro ou médico, voltava a dizer, e eu sempre o mesmo, invisível, o homem da câmara de filmar, a dada altura dominado pela câmara que ao princípio orientava. Agora que filmo? É o nada, o mundo fecha-se perante mim, torna-se o sujeito e eu o objecto, sentado no chão e de papéis nas pernas. E já nem a janela se abre, e já nem a mesa se ocupa, e os livros merecem ser lacrados de tão fechados estarem. Ontem comprei os 21 círios, sete por cada uma das três vidas que podia ter vivido. A que os meus pais sonharam, que era simples, era aquela em que seria feliz e os faria feliz; a que a Maria sonhou, mais complicada, seria engenheiro ou médico, teria vida trabalhosa, mas na subtracção dos suores de meia-noite às alegrias de pândega (palavras dela) ficaria bem servido; e aquela que sonhei em novo, quando aprendi o que era o sonho e o que ele tinha de diferente da realidade. Seria músico, daqueles de capa negra, rosto sério, cabelo desalinhado.

Agora, agora quero levantar-me. Vou ver a velha carta topográfica e recordar o que fica para norte. Acho que é um riacho. E que esse riacho desce para oes sudoeste, juntando-se ao ribeiro que parte das Alvinhas. Esse prossegue, tem alguma força, sobe para norte, nor noroeste, tem a sua foz com o rio das sereias, como por cá dizem, que mais caudal menos caudal levará ao oceano. Seguirei os três: o riacho, o ribeiro, o rio. E depois verei o mar. Acho que ainda encontrarei uma ou outra gaivota na praia, espero que de ponta de bico avermelhada.

Vou-me deitar. Não, que ainda estou com fome

- Maria, posso comer em tua casa?

- sim, menino, eu faço aquelas batatinhas estufadas, está bem?

Não sei quem é que a Maria vê. O menino já morreu. Foi algures numa madrugada em que estava frio e ninguém trouxe a bolhinha para aquecer os pés. Ou quando o menino chegou a casa molhado e encontrou-a fria e nua. Ou quando viu a vergonha na cara do velho, o jeito cheio de vício, a cara rasgada pelo que não foi. E tudo olhando-se ao espelho.

- O menino já morreu, Maria.

- não, menino. O menino está triste. Venha só comer as batatinhas e depois fala com a Maria, está bem?

Um comentário

Gostei, mas acho que já to tinha dito.

by Guilherme Silva on 21 de outubro de 2008 às 22:08. #