#2 às terças, quase como acaso

por TR em terça-feira, 14 de outubro de 2008

COMO OS CARACÓIS

Noutro dia falava com ela, menina de vivência variada, embora de jeito doce. Dizia-me,

- tenho saudades de ser criança. Era tão bom. Não há felicidade como essa. Quem me dera voltar a esse tempo.

Ri-me por dentro, mantive-me impávido por fora, sou como os caracóis, casca à superfície, viscosidade no interior,

- pois era, era um tempo muito bom.

Dei a minha parte de fraco, mas menti com os dentes todos, eu que não tenho muitos, infância com pasta de dentes Nestlé e escovas de amêndoas pascais (que tem a ver as amêndoas com a Páscoa?) deixou as suas marcas, agora são só 15 que, pelo menos, não se atrapalham, são tão poucos que os baptizo, um é o carrancudo, o outro o cheiroso, e também há o crocodilo (que é um molar), o vespertino, o arisca, o estafeta e o ardina. E depois tenho outros, agora não me lembro do nome, se me esquecer paciência, invento novos, amanhã talvez três novos dentes flagelados cheguem ao mundo, e com nome, que nenhum dente é apátrida (cada nome é uma pátria). Já me começam a surgir, é vê-los a chegar, tiram senha e aguardam a vez, mas eu faço-me difícil, cada nome digladia-se com os restantes até alcançar a dignidade suficiente para ser a porta para o mundo de um dente. Sou só um árbitro, mais nada, limito-me a acolher o nome que ultrapassou todas as eliminatórias, de preferência com knock-out e não vitórias em pontos.

Ela agora pensa que concordo com ela, anda feliz e contente, é vê-la pelas ruas, venham comigo que quando ela passar eu digo

- olha, aquela é a tal da infância feliz.

E rir-me-ei, não há por que esconder, rir-me-ei com os dentes todos, aqueles 15 magriços que preferem os lodaçais e as florestas selvagens dos docinhos, onde há sanguessugas que aderem aos mais vigorosos corpos, àqueles suaves mares das pastas dos dentes. Mas, se ela olhar para mim, susterei o riso com todas as forças que conseguir reunir, e farei o mais amarelo sorriso de conveniência do mundo, o que é bom, porque não tenho outro.

Como pode ela dizer que o momento mais feliz da sua vida foi a infância, que queria voltar até tão longe (isto se a vida for um caminho), se só percebeu que era feliz na infância depois da infância passar? Sim, sei que tenho razão, ela se voltasse à infância voltava a desconhecer que era feliz nessa altura, e tudo lhe pareceria normal, claro que sim, teria de fazer o que lhe obrigassem, ai ai, iria voltar a aprender o alfabeto, e a somar dois mais dois, e tudo isso lhe pareceria coisa bem menos importante do que brincar com as bonecas que apareceriam nas manhãs de sábado por perto das férias de natal, e ficaria revoltada. Ia querer ser adulta, para poder gastar o dinheiro no que queria, e iam ser só guloseimas, coisas boas boas, como aquelas que sacrificaram os meus dentes, só 15 sobreviveram, e um dia chegaria aos 13 anos, adoraria, chamaria chavalos ao miúdos mais novos, aqueles com quem em pequena brincava, e começaria a ir às compras com as amigas, se calhar isto não, ela sempre foi maria rapaz (para gáudio de todos veio a mudar), mas estaria feliz por já não ser pequenina e precisar de ajuda para fazer chichi. Há também a outra hipótese, mas o cenário será mais negro, muito noir, muito noir, que é o de voltar à infância com conhecimento de adulta, aí é que iam ser elas, nem era criança nem era adulta, nem goma nem safari cola (que ela agora gosta, diz que é docinho), como iria tolerar o miúdo que bate no outro porque sim, ou a professora chunga ou, como ela agora saberia dizer, incompetente? Não, também assim a infância não era a mais feliz do mundo, estaria à frente dos do seu tempo, nada seria como a infância que recordava agora que era adulta, não haveria mistérios a descortinar.

Esquece-se que tudo tem o seu tempo, que a beleza da infância está no que depois veio, do pensar como era então tão boas essas realidades que hoje se lhe esvaem pelos dedos, que são esguios.

Noutro dia, embora mais próximo do que o outro, voltei a vê-la, vinha de brincos de argola e camisola de malha. Também tinha calças de ganga, justas nas coxas, com uns furinhos perto dos tornozelos, e sapatilhas de aeróbica. Quando a vi sorri, não estava a ser irónico, mas também não pensava nesta história da infância. Não, meu pensamento andava por outros lados nesse mundo das ideias, que sita na memória de cada um, pensava numa ironia qualquer que na vida surge, sabem como é, lugares comuns que todos conhecemos. Ela estava com tempo, eu também, embora com menos do que lhe disse que tinha, enfim, mas é que ela sorriu e tinha sorriso bonito, “jeito doce”, disse há pouco, não resisti. Convidei-a a tomar café e bebi um, ela ficou-se pelo carioca de laranja, não, de limão. Como boa conversa exige, falamos de muita coisa

- da praça general Humberto Delgado

- dum filme qualquer com o Al Pacino (que ela apreciava, gostava do nome)

- duma historieta qualquer que devia ter sido falada a uma porta de janela

- eu traulitei uma música qualquer (acho que o hino russo) e fi-la sorrir

Mas também falamos de emancipação jovem, embora sem usar tais palavrões, e ela contou-me a história de uma amiga, jovem-adulta com 25 anos, creio, que largou da casa dos pais para iniciar uma vida dita independente. Contava minha amiga que a amiga (minha amiga em 2º grau, por conseguinte) queixava-se que a vida era dura, muito difícil, e disse-o sempre com ar sério, de quem sobre tal muito reflectiu.

- oh, ela fala mas é de contente. Não há nada como vivermos sozinhos, então, é o melhor momento da vida, não é? Aos vinte e tal é que fazemos o que queremos…já sem estudar e ainda sem filhos, isso é que é liberdade…

Ri-me por dentro, mantive-me impávido por fora, sou como os caracóis, casca à superfície, viscosidade no interior,

- pois é, é o melhor tempo da nossa vida.

3 comentários

Gostei do texto (mas deu muito trabalho fazer copy para o word e modificar o tipo de letra! :P )Estou a brincar... Ideia original!

by Luísa on 14 de outubro de 2008 às 17:43. #

Excelente. Foi o que mais gostei até hoje. Parabens.

by Guilherme Silva on 14 de outubro de 2008 às 20:08. #

do mais agradável e inteligente de ler. senti-me como se tivesse num café a ouvir conversar.
tiago ramalho revela-se um Escritor!

by Manuel Marques Pinto de Rezende on 15 de outubro de 2008 às 00:23. #