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por TR em segunda-feira, 28 de abril de 2008

"Penso que a tendência automática para perpetuar os trabalhos sem sentido se deve, no fundo, simplesmente ao medo que as massas populares inspiram. A plebe - pensam uns - é formada por uma espécie animal tão vil que se torna perigosa se tiver tempo para isso; o melhor é conservar os seus membros permanentemente ocupados, de modo a não terem ocasião de pensar. Qualquer rico, capaz de um mínimo de honestidade, se o interrogarmos acerca da melhoria das condições do trabalho, dirá mais ou menos o seguinte:
«Sabemos que a pobreza não é agradável; de facto, trata-se de um mundo tão afastado do nosso, que chegamos a ter um certo prazer quando pensamos no horror que é ser pobre. Mas não podem esperar que façamos seja o que for para modificar as coisas. Lamentamos as classes inferiores como temos pena de um gato tinhoso, mas lutaremos implacavelmente contra qualquer melhoria das suas condições de existência. Achamos que é muito mais seguro que as coisas continuem a ser como são. É uma situação que nos convém, e não vamos correr o risco de deixar os pobres com uma hora suplementar de liberdade por dia. Por isso, meus irmãos, uma vez que tendes de suar para nós podermos pagar as nossas viagens a Itália, suai e ide para o inferno.»
Este atitude é característica, sobretudo, das pessoas inteligentes e mais ou menos ilustradas; encontraremos a argumentação acima exposta, com pequenas variantes, em centenas de ensaios. Acontece, por outro lado, que são muito poucas as pessoas instruídas que têm menos, por exemplo, do que quatrocentas libras anuais; naturalmente, por isso, é do lado dos ricos que essas pessoas tendem a colocar-se, imaginando que qualquer liberdade concedida aos pobres é uma ameaça à sua própria liberdade. Supondo que a única alternativa para o estados de coisas actuais é uma indefinida e sinistra utopia marxista, as pessoas cultas preferem que tudo continue na mesma. É provável que não gostem especialmente dos ricos, mas supõem que mesmo o mais vulgar dos ricos é um inimigo menos perigoso dos seus prazeres do que o pobre, e assim defendem aquele contra este. É o medo de uma plebe contra a qual se projectaram todos os perigos imagináveis a razão que torna quase todos os espíritos cultos conservadores nas suas ideias e atitudes.
O medo dos pobres é um medo devido à superstição. Assenta na ideia de que existe uma misteriosa diferença essencial entre o rico e o pobre, como se pretencessem a raças diferentes, um negro e outro branco. Na realidade, não há qualquer diferença entre os dois termos. A massa dos ricos e a massa dos pobres distinguem-se pelo montante dos respectivos rendimentos e por nada mais além disso. O milionário médio é igual ao lavador de pratos médio decentemente vestido. Troquemos-lhes os lugares e quem poderá dizer qual o juiz e qual o ladrão? Os que partilharam realmente das condições de existência dos pobres sabem que assim é. O problema é que as pessoas cultas, as pessoas que poderiam ter uma atitude mais liberal a este respeito, nunca se misturam com os pobres. O que é que a maioria das pessoas cultas sabe da pobreza? Na minha edição dos poemas de Villon, os editores acharam necessário explicar numa nota de pé de página o sentido desse verso: «Ne pain ne voyent qu'aux fenestres»[Só vêem o pão às janelas] - de tal mdo a experiência da fome é estranha à experiência de uma pessoa isntruída.
Tal ignorância é logicamente responsável pelo medo supersticioso que as massas populares inspiram. O homem instruído imagina o povo como uma horda de subgente, que só pensa em obter um dia de liberdade para lhe ir queimar a casa e os livros e o obrigar a trabalhar com uma máquina de fábrica ou a limpar casas de banho. «Tudo», pensa o homem instruído, «todas as injustiças são preferíveis ao poder da populaça». O que ele não vê é que, não havendo grande diferença entre a massa dos ricos e a massa dos pobres, está fora de questão impedir a populaça de tomar o poder."

George Orwell, Na penúria em Paris e em Londres, anos 30

2 comentários

Tinha aqui o livro na estante para ler já há uns tempos. Depois deste excerto, certamente vou pegar nele brevemente... muito bom.

Um abraço

by Francisco on 28 de abril de 2008 às 21:59. #

este será muito provavelmente o próximo livro de Orwell que vou comprar. :)

by D. on 1 de maio de 2008 às 20:48. #