Quid Iuris? (I)

por Tribuna em quinta-feira, 10 de janeiro de 2008


Concorda com as soluções de determinação da filiação da Lei 32/2006, de 26 de Julho (Procriação Medicamente Assistida)?

Professora Doutora Luísa Neto, Professora Auxiliar da FDUP


Cumpre começar por lembrar que a Lei 32/2006, de 26 de Julho, que veio regular a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), dando cumprimento a uma incumbência do Estado prevista na alínea e) do n.º 2 do art.º 67.º da CRP, era um diploma reclamado há já algum tempo, versando sobre um assunto especialmente melindroso – o da geração de novas vidas sem recurso aos meios naturais, isto é, à prática de relações sexuais entre os procriantes.
Ora, apesar de ser um terreno fértil onde podem germinar – germinaram e germinam – importantes e delicadas discussões que extravasam mesmo o campo jurídico, vamos centrar-nos tão-só na questão colocada que é muito precisa e concerne aos critérios jurídicos de estabelecimento da filiação à luz da supracitada lei.
Importa, desde logo, recordar que os dados normativos à data existentes – e que se aplicam, mesmo neste âmbito da PMA, nos espaços para os quais não tenham sido previstas normas especiais – fornecidos pela disciplina constante nos art.º 1796.º e ss do Código Civil (C.C.) assentam, em larga medida, no princípio do biologismo ou da verdade biológica, princípio considerado capital nesta matéria. Através do regime aí consagrado (pensado para a procriação natural), o legislador procura que juridicamente sejam pai e mãe, aqueles que biologicamente são pai e mãe – o primeiro, porque foi o seu espermatozóide que fecundou o óvulo da mãe, e a segunda por ser aquela de cujo ventre o filho nasceu.
E se essa coincidência entre a verdade biológica e a verdade jurídica são promovidas pelo regime do Código Civil, os progressos científicos, em particular da biologia e da genética, permitem dar-lhe concretização ao disponibilizarem novas técnicas de aferição do vínculo biológico com elevado grau de fiabilidade (os resultados dos testes de DNA apresentam, com frequência, graus de probabilidade de paternidade ou maternidade muito próximos de 100%).
Porém, são, também, essas conquistas científicas – ao proporcionarem a concepção de um ser humano através de métodos terapêuticos (técnicas de PMA) em que se pode recorrer a células reprodutivas doadas por terceiros – que podem ditar um desvio à prosseguida verdade biológica. Algumas factispecies – as de fecundação artificial heteróloga – fornecem, desde logo, as premissas para o desvio. Um desvio ao princípio magno do estabelecimento da filiação plenamente justificado por valores superiores, em homenagem – espera-se – a uma outra verdade.
Ora, o objectivo que deve guiar o recurso às técnicas de PMA (traçado no art.º 4.º da Lei) é concretizar um projecto parental que a natureza, por si só, não possibilita – ou possibilita “com grave risco de transmissão de doenças de origem genética, infecciosa ou outras”, art.º 4.º n.º 2 in fine – a determinadas pessoas: duas pessoas com mais de 18 anos – não interditas nem inabilitadas por anomalia psíquica – de sexo diferente, desde que se encontrem casadas e não separadas de pessoas e bens ou que vivam em união de facto heterossexual há pelo menos dois anos, ex vi art.º 6.º da referida lei.
Por outro lado, aqueles que recorrem às técnicas de PMA fazem-no, suprindo uma incapacidade para conceber naturalmente (princípio da subsidiariedade a que o recurso às técnicas de PMA deve obedecer, nos termos do n.º 1 do art.º 4.º), porque, malgrado a menos afortunada natureza, querem ser pais. É em respeito a essa vontade que o recurso a tais técnicas lhes é proporcionado. E a formação dessa vontade deve processar-se de um modo especial, iluminado por um esclarecimento adequado. Por isso, aqueles que recorrem à PMA têm que ser “informados, por escrito, de todos os benefícios e riscos conhecidos resultantes da utilização das técnicas de PMA, bem como das suas implicações éticas, sociais e jurídicas” (n.º 2 do art.º 14.º). Assim esclarecidos devem livremente prestar o consentimento de forma expressa e por escrito perante o médico responsável (n.º 1 do mesmo artigo).
Em homenagem a esta vontade assim exteriorizada e dirigida àquele objectivo de dar concretização ao projecto parental voluntariamente traçado, a solução jurídica adoptada para a determinação da paternidade e maternidade deve traduzir essa verdade teleológica, essa verdade de desígnio. Quer dizer pais devem ser aqueles que recorrem às técnicas de PMA – ou melhor aqueles a quem se permite esse recurso, em obediência ao rigoroso âmbito subjectivo de beneficiários e ao circunscrito círculo objectivo de finalidades e condições de admissibilidade recortados nos art.º 4.º a 7.º da referida lei, num respeito escrupuloso pelo intangível princípio da dignidade humana, como lembra a proclamação do seu art.º 3.º. E devem sê-lo mesmo que o material genético empregue não lhes pertença, isto é, mesmo que a verdade biológica seja atraiçoada.
Ora, as soluções consagradas na Lei 32/2006, de 26 de Julho dão concretização a esse ditame.
Assim, os dadores de ovócitos, de espermatozóides ou de embriões nunca são havidos como progenitores, nos termos do art.º 10.º que contém um princípio geral que depois é reafirmado no art.º 21.º a propósito da inseminação artificial aplicável, por força do art.º 27.º à fertilização in vitro.
A mãe será o elemento feminino do casal beneficiário das técnicas de PMA e pai o elemento masculino desse mesmo casal. Ora, como a maternidade, em regra, se estabelece por declaração da mãe ou de terceiro (art.º 1803.º e ss do CC), o legislador não curou de criar regras especiais nesta matéria. Já maiores dificuldades suscitaria o estabelecimento da paternidade, pelo que a este propósito no n.º 1 do art.º 20.º determina-se que o filho que venha a nascer é havido como filho do marido ou daquele que viva em união de facto com a mulher inseminada, “desde que tenha havido consentimento na inseminação, nos termos do art.º 14.º” (regra aplicável às situações em que haja recurso à fertilização in vitro, por força do art.º 21.º).
Ora, no caso de os beneficiários serem casados, a solução acabada de referir é a que resultaria das regras gerais previstas no Código Civil dado que – à semelhança do que ocorre nos casos de concepção natural – funcionaria a presunção pater is est do art.º 1826.º que, nestes casos, segundo o n.º 3 do art.º 1839.º, nem sequer pode se impugnada pelo marido quando ele tenha prestado o seu consentimento para o concreto processo terapêutico procriativo.
Já no que concerne à união de facto o regime consagrado na Lei 32/2006, de 26 de Julho apresenta relevantes especialidades face ao regime geral de estabelecimento da paternidade (fora do casamento). Na verdade, para a “vivência em condições análogas aos dos cônjuges”, com protecção fragmentada no nosso ordenamento, o legislador não previu (no C.C ou na Lei 7/2001 de 11 de Maio) um modo especial de estabelecimento de paternidade (não nos debruçando nós aqui sobre a possibilidade e adequação da extensão da presunção do art.º 1826.º do C.C. à união de facto), considerando adequada uma mera especificidade na distribuição do ónus probatório no âmbito da acção de investigação de paternidade (alínea c) do n.º 1 do art.º 1871.º do C.C.) tendente ao estabelecimento da paternidade por reconhecimento judicial. Assim sendo, se uma criança for concebida pela prática de cópula por uma mulher não casada que viva em união de facto com um homem, a paternidade deste deverá estabelecer-se por perfilhação ou por reconhecimento judicial. Repare-se, no entanto, que se houver recurso à PMA funcionará uma presunção de paternidade apta a estabelecer a se a paternidade, desde que se prove o consentimento para o recurso às técnicas de PMA por parte do elemento masculino da união de facto (sem exigência de forma se ele estiver presente na conservatória ou por documento que ateste o consentimento nos termos do art.º 14.º no caso de ele não estar; havendo lugar, em caso de falta de qualquer desses meios, a um processo de averiguação da prestação do consentimento sério livre e esclarecido, nos termos do n.º 4 do art.º 20 da citada lei).
A presunção de paternidade que funciona, então, quando haja recurso a técnicas de PMA, também, fora do casamento, conduz ao estabelecimento da paternidade e só pode ser impugnada se se provar que não houve consentimento ou que a criança nascida não resultou do processo procreativo medicamente assistido para que o consentimento foi prestado (art.º 20.º, n.º 5). Repare-se que não há possibilidade de afastamento da presunção por ela não corresponder à verdade biológica (como se prevê no regime geral do n.º 2 do art.º 1839.º do C.C.), pois aqui a presunção não funciona por traduzir uma especial probabilidade de que alguém (o marido da mãe, in casu do art.º 1826.º do C.C.) seja pai, mas porque o sujeito sobre quem recai a presunção do art.º 20.º (marido ou unido de facto) quis – séria e esclarecidamente – ser pai com recurso a técnicas de PMA, prestou o seu consentimento nesse sentido nos termos do art.º 14.º. E será juridicamente pai, ainda que geneticamente não o seja.
O menor relevo assim concedido à verdade biológica e a atribuição de idêntica relevância, para o estabelecimento da filiação, à manifestação de uma vontade séria e informada de ser pai, por parte de quem o pode de facto – com a ajuda da ciência – vir a ser, explica o preceituado no n.º 2 do art.º 23.º. Nesta norma considera-se a hipótese de, em contravenção da proibição contida no artigo anterior, ser empregue material genético do marido ou do unido de facto entretanto falecido na geração, post mortem, de uma nova vida. Se tal ocorrer, em princípio, pai é o falecido. Porém, assim não será se entretanto a mulher tiver contraído novo casamento ou viver há pelo menos dois anos com outro homem, e se houver consentimento do novo elemento masculino do casal, nos termos já referidos do n.º 1 de art.º 14.º: neste caso pai será o novo marido ou o novo companheiro. E repare-se que assim será, mesmo que o falecido tenha manifestado o consentimento para o recurso à PMA. O legislador entendeu dar assim prevalência à vontade daquele que pode vir a desempenhar o ofício parental em detrimento daquele que, por verificação da sua morte, não pode concretizá-lo.
Por fim, cumpre referir que, contrariamente às factispecies enunciadas, em que o elemento volitivo – nos exactos e estreitos termos referidos – prevalece sobre o elemento biológico, uma hipótese há em que o legislador proclama a aplicação inderrogável do princípio da verdade biológica, apesar de poder contrariar um projecto parental que lhe subajza e a vontade dos elementos intervenientes no processo procriativo. Falamos do disposto no n.º 3 do art.º 8.º da citada lei que, com o fito de condenar veementemente as práticas vulgarmente conhecidas pela expressão “barrigas de aluguer”, afirma que a mulher que suportar a gravidez será a mãe da criança que vier a nascer, ainda que o tenha feito por conta de outrem e com renúncia aos poderes e deveres próprios da maternidade. Destruindo assim o objectivo prosseguido – o da maternidade subrogada – o legislador pune, desta forma, ao nível do estabelecimento da filiação, tais práticas contrárias aos princípios de ordem pública em matéria de Direito da Família, para além da cominação da nulidade para o negócio jurídico (gratuito ou oneroso) em que assentem (n.º 1 do art.º 8.º da citada lei, mas que se retiraria do n.º 1 do art.º 280.º do C. C.) e de, ao caso, serem aplicáveis outras sanções previstas no art.º 39.º do mesmo diploma.

A concluir diremos, então, que os critérios nos parecem adequados, servindo a verdade afectiva que deve subjazer à vontade esclarecida e livre daqueles que querem ser pais, e a quem a ciência, corrigindo os elementos menos venturosos da natureza, está apta a conceder um auxílio providencial. Sem cedências cegas às utopias realizáveis de um qualquer admirável mundo novo. Sempre dentro de um perímetro cuidadosamente traçado à luz do princípio da dignidade humana.

Mestre Rute Pedro, Assistente da FDUP

O Tribuna agradece às duas docentes que iniciaram esta rúbrica a sua disponibilidade e participação! No próximo mês, uma nova pergunta-resposta!

3 comentários

Estou esmagada com a resposta (com que aliás concordo).

by Anónimo on 11 de janeiro de 2008 às 09:34. #

Desde já, os meus parabéns ao João Fachana pela ideia do "Quid Iuris" ;)

Li com muita avidez o post, até porque é uma matéria de que gosto particularmente!!

E devo dizer aos alunos de Direito da Família II que esta resposta lhes será muito útil no semestre que se avizinha...

Espero ansiosamente nova pergunta-resposta ;)

by White Castle on 11 de janeiro de 2008 às 23:49. #

Subscrevo, na íntegra, o comentário da Prof.ª Luísa Neto!
Parabéns, Mestre Rute Teixeira Pedro!

by filipelamas on 13 de janeiro de 2008 às 13:21. #