O Autocarro

por Tribuna em domingo, 20 de maio de 2007

Boas tardes!

Como não foi possível colocar este texto na secção d' Opinião dos Alunos, da edição de Maio, aqui vai o texto do João Fachana.


O AUTOCARRO

Uma caricatura de nós mesmos, “portuguesinhos” de gema

Na paragem o dia começa cedo. Pouco passa das sete e pico quando se ouve o primeiro veredicto: “O ‘carro tá atrasado outra vez!”. “É sempre a mesma coisa, nunca chegam a horas! E a gente paga cada vez mais! Ora bolas!”.
Pouco depois chega o autocarro e, para não variar, vem cheio. Ou melhor, quase cheio, que não sai ninguém naquela paragem, mas os que estão para entrar ainda conseguem encher o livre espaço de aragem. Após um breve sermão encomendado ao motorista por se ter atrasado (como se ele fosse Deus e conseguisse afastar todo o trânsito da sua frente) dá-se o jogo do empurra, das cotoveladas, dos “Oh senhor deixe passar que eu quero sair!”, “Oh menina tenha calma que isto dá para todos!”, “A senhora saia-me da frente!”, “Eh, não empurre! Para onde julga que quer ir?”…
E é de encontrão em encontrão que o motorista faz uma travagem brusca, um camião meteu-se na frente sem avisar e ele não tinha remédio senão travar. “Oh motorista, tenha calma, não vê que vão pessoas de pé?”, diz um passageiro que quase batia com o nariz no chão. Ao motorista apetece-lhe responder “Oh morcão, se eu não travasse, batíamos contra um camião!”, mas cala-se, inspira fundo e continua o seu trabalho. A paragem seguinte é uma paragem central e a “lata de sardinhas” retorna à figura de um autocarro normal. Os ânimos parecem estar menos exaltados. Só que, nisto, chega um homem de muleta que começa a resmungar. É que uma senhora está sentada no seu lugar! Estão vários lugares vazios mas ele teima e continua, a senhora que saia, que aquela cadeira não é a sua! A senhora desiste, mas sem antes dar duas de letra ao homem que apelida de perneta. O motorista, com tanto barafustar dos dois, nem ouve a campainha tocar. E um pouco depois de passar a paragem lá vai o coitado ouvir a mensagem: “Oh motorista, olha a porta de trás! Está surdo o homem!”
A carreira está prestes a terminar, finalmente o motorista vai poder descansar, no entanto sem antes ouvir duas velhotas a comentar: “E esta, parece que o Sócrates não é engenheiro…” “Como é que algum dia o podia ser, se sempre foi um mentiroso a tempo inteiro?” “Ai como isto está. Vamos de mal a pior! No tempo de Salazar… No tempo de Salazar é que era…” Era o quê? Ela não sabe… Mas que alguma coisa era, era era…
E acabou. O motorista pode finalmente relaxar nos cinco minutos que restam antes do próximo turno começar…
O Autocarro é o exemplo perfeito do retrato do nosso Portugal. Toda a gente diz mal, toda a gente crítica, toda a gente tem a solução ideal. Mas na hora da verdade toda a gente se deixa levar pelo autocarro e o único que trabalha é… O motorista!


João Fachana